Título: Oportunidade para mudanças
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 30/04/2008, Opinião, p. A18

Das duas crises que estão inquietando a economia mundial - a desordem financeira e a alta crescente nos preços dos alimentos - esta última é a mais inquietante. Em muitos países em desenvolvimento, o quartil mais pobre dos consumidores gasta um valor próximo de 75% da sua renda em alimentos. Inevitavelmente, os preços elevados ameaçam causar intranqüilidade, no melhor cenário, e fome em massa, no pior.

As recentes espirais de preços se aplicam a quase todos os gêneros alimentícios e alimentos importantes. Estes saltos, porém, são eles próprios parte de uma gama mais ampla de altas nos preços das commodities. Forças poderosas estão vinculando preços de energia, matérias-primas industriais e gêneros alimentícios. Essas forças incluem o veloz crescimento econômico no mundo emergente, pressões sobre o fornecimento de energia mundial, a fragilidade do dólar dos EUA e pressões inflacionárias globais.

O fator alimento desta história, porém, tem a sua própria relevância. Como assinala o HSBC em análise recente ("Food Fight", 15/4), com as altas súbitas nos preços do arroz e do trigo, distúrbios nas ruas das Filipinas, Egito e Haiti e iniciativas da Índia, Vietnã, Camboja e China para restringir as exportações de arroz, os alimentos são de repente um tema ainda mais polêmico que de costume.

Então, por que os preços dos alimentos aumentaram tão vigorosamente? Esses preços mais elevados se manterão? Que medidas devem ser adotadas como resposta?

No lado da demanda, os sólidos aumentos na renda per capita na China, Índia e em outros países emergentes elevaram a demanda por alimentos, especialmente carne e a ração animal correspondente. Essas alterações no uso da terra reduzem o fornecimento de cereais disponíveis para consumo humano.

Além disso, a produção crescente de biocombustíveis subsidiados, estimulada ainda mais pelos aumentos contínuos nos preços do petróleo, impulsiona a demanda por milho, óleo de colza e demais grãos e óleos comestíveis, que são alternativa às lavouras de alimentos. A edição mais recente do "Panorama Econômico Mundial", do Fundo Monetário Internacional, comenta que "apesar de os biocombustíveis ainda representarem apenas 1 ½ por cento do fornecimento líquido global de combustíveis, foram responsáveis por quase metade do aumento no consumo das principais lavouras de alimentos em 2006-2007, em grande parte devido ao etanol baseado no milho produzido nos EUA".

Enquanto isso, a produção combinada de milho, arroz e soja estagnou em 2006 e 2007. Isso foi, em parte, resultado da seca. Mas também têm sido importantes os preços mais altos do petróleo, já que a atividade rural moderna é tão intensiva em energia. Com o fraco crescimento da oferta e fortes aumentos na demanda, os estoques de cereais caíram aos seus níveis mais baixos desde o começo da década de 1990.

A queda nos estoques mina a crença generalizada de que a especulação impulsionou os preços crescentes, uma vez que os estoques estariam aumentando, não caindo, se os preços estivessem acima dos níveis de equilíbrio de mercado.

Muito mais preocupante do que a especulação é o fraco crescimento da oferta no médio prazo. Os aumentos velozes nos índices de produtividade dos anos 70 e 80, à época da "revolução verde", desaceleraram-se. Considerando-se as pressões sobre o abastecimento de água, as perspectivas de abastecimento de prazo mais longo pareceriam insatisfatórias, mesmo se o desvio de terra para a produção de biocombustíveis não se somasse à pressão.

Será que os preços permanecerão elevados? Duas forças antagônicas estão em ação. A primeira é o mercado, que tenderá a fazer os preços retornarem a patamares mais baixos, enquanto os estoques se expandem e a demanda se retrai. Mas esta última é também o que queremos evitar, pelo menos no caso dos pobres, já que reduzir o seu consumo não é uma solução e, sim, um fracasso. A segunda força é a pressão intensa atual aplicada sobre o sistema alimentar mundial. Isso vale tanto para a demanda como para os custos da oferta.

Os preços provavelmente permanecerão relativamente elevados, pelos padrões históricos, a menos que (ou até que) os preços da energia caiam.

Isso, portanto, nos conduz à grande pergunta: o que deve ser feito? As respostas se inserem em três categorias: humanitária, comércio exterior e outras intervenções políticas e produtividade e produção de prazo mais longo.

O ponto importante na primeira questão é que os preços mais altos dos alimentos têm poderosos efeitos distributivos: prejudicam mais os pobres. O braço da ONU para a Agricultura e a Alimentação (FAO) em Roma fez recentemente uma lista de 37 países com enorme carência de assistência alimentar. Além disso, segundo o Banco Mundial (Bird), a alta crescente nos preços ameaça deixar famintas pelo menos 100 milhões de pessoas.

Aumentos na ajuda aos vulneráveis, na forma de alimento ou de dinheiro, são vitais. Igualmente importante, porém, é assegurar que as provisões adicionais cheguem até os que estão em maiores dificuldades.

As opções dependem da sofisticação do aparato burocrático do país. Mas elas incluem trabalho pago diretamente com alimento (o que é uma boa maneira de filtrar os que estão em melhores condições), provisão racionada de comida barata para os pobres ou cupons de dinheiro. Os mais necessitados serão os sem-terra, tanto na zona rural como na urbana, e os marginais agricultores das lavouras de subsistência.

Agora, retornemos às políticas de intervenção. Proteção, subsídios e outros disparates do naipe distorcem a agricultura mais do que qualquer outro setor. Infelizmente, a oportunidade de eliminar a proteção contra as importações, oferecida pelos preços mundiais excepcionalmente altos, não está sendo aproveitada. Grande número de países está preferindo aplicar impostos de exportação, fragmentando ainda mais o mercado mundial, reduzindo incentivos e penalizando países pobres exclusivamente importadores. Enquanto isso, os países ricos estão estimulando, ou obrigando até, seus agricultores a cultivar combustível em vez de alimentos.

A crise atual é uma oportunidade de ouro para eliminar essa profusão de intervenções danosas. O enfoque político da rodada de Doha sobre a redução do protecionismo é, em grande medida, irrelevante. O enfoque deve estar no deslocamento do setor agrícola na direção do mercado, amortecendo, nesse processo, o impacto dos altos preços sobre os pobres.

Por fim, será necessário dedicar recursos muito maiores para expandir a oferta de longo prazo. O aumento dos gastos com pesquisa será essencial, especialmente para a agricultura em terra árida. O movimento na direção de alimentos transgênicos nos países em desenvolvimento é tão inevitável como o dos países desenvolvidos na direção de energia nuclear. Pelo menos tão importantes serão o uso mais eficaz da água, por meio de mecanismos de preço e investimentos adicionais.

As pessoas se oporão a algumas dessas políticas. A fome em massa, contudo, não é uma opção tolerável.

A crise dos alimentos e dos combustíveis de 2008 clama pela nossa atenção.

Ninguém sabe por quanto tempo esses choques se manterão. Mas eles exigem rápidas mudanças de políticas em todo o mundo. Precisamos escolher entre fragmentar os mercados mundiais ainda mais e integrá-los, entre ajudar os pobres e deixá-los morrer de inanição e entre investir na melhora da oferta e permitir que as deficiências alimentares aumentem. As escolhas corretas são óbvias. O momento de fazê-las é agora.