Título: Mora na filosofia
Autor: Eliana Cardoso
Fonte: Valor Econômico, 17/02/2005, Brasil, p. A2

Francis Bacon, filósofo inglês, reconhece que a dissimulação causa três danos. Desencanta possíveis aliados. Revela o medo e, portanto, impede o vôo alto e livre. E priva o dissimulado da credibilidade - o mais importante instrumento de ação do político e do amante. Mas apesar desses malefícios, Bacon prefere as vantagens do fingimento, que também são três. A dissimulação engana a oposição e evita que o entendimento de propósitos transparentes desperte a atenção de quem será contrariado. Guarda para o dissimulado uma retirada estratégica. Pois o político (ou o amante) que se revela e não triunfa está condenado: torna-se vulnerável demais. E, por último, permite desvendar o que vai na cabeça do outro: conte uma mentira e descubra uma verdade. O ensaísta do século 16 elogia quem faz do segredo um hábito; da dissimulação, bom uso; da arte de fingir, um talento. Não é preciso dizer mais. Já está clara a afinidade de Bacon com Maquiavel e Don Juan. E com os políticos de ontem e de hoje. Nem sempre a falsidade deriva de um cálculo frio. Algumas vezes as pessoas se confundem. Mas supondo que o presidente do BNDES conheça teoria econômica e história do Brasil, teremos de interpretar as declarações que fez à imprensa na semana passada como parte do jogo de cena do político.

A tese de que "a equação mais adequada para se combater a inflação é o aumento da oferta" (Mantega, "Estado de S. Paulo", 10/2) foi defendida por estruturalistas em décadas passadas. A inflação precisou chegar a mais de quatro dígitos para que o Brasil aprendesse que ela é um fenômeno monetário com raízes fiscais. E que, portanto, seu remédio é a austeridade e não os gastos em subsídios creditícios. Ao contrário do presidente do BNDES, o secretário do Tesouro Nacional está preocupado com o risco que a recente aceleração do crédito representa para a política monetária. Essa aceleração vem ocorrendo tanto no setor de recursos direcionados (e no BNDES em particular) quanto no setor de recursos livres (como mostra a tabela abaixo). Joaquim Levy argumenta que "deve haver sintonia entre os diversos instrumentos do governo. Permitir que a Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP) flutue com a Selic é uma forma de se dar pleno efeito ao principal instrumento da política monetária" ("Estado de S. Paulo", 10/2). Mantega disse que os argumentos do secretário não valem porque "não cabe a ele tomar decisão, não tem autoridade e não participa do Conselho Monetário Nacional" ("Estado de S. Paulo", 11/2). As mesmas observações se aplicam ao presidente do BNDES. Portanto, sua opinião também não tem valor, como não teriam a opinião de quem escreve esta coluna ou o julgamento dos leitores, que não votam no CMN. Mesmo assim, vamos em frente.

Governo faz oposto do que recomenda a teoria

"Uma TJLP oscilante atrapalha o investidor. Ele não sabe qual a base de cálculo que vai usar, não sabe o custo financeiro que vai ter" ("O Globo", 11/2). A solução oferecida pelo presidente do BNDES é transferir o risco para o BNDES e para o governo. Que o governo assuma riscos pertencentes ao setor privado. Quem paga impostos pagará a conta que os empresários beneficiados pelo BNDES se recusam a assumir. E Mantega disse ainda que existe uma taxa de juros para o consumo e outra para o investimento. A afirmação o transforma no homem que desconhece que dinheiro não tem cor e guarda em caixinhas separadas o da feira, o da escola das crianças, o do cinema e o dos remédios. Na década de 50, economistas dessa linha de pensamento uniram-se a políticos na tentativa de separar o dinheiro do consumo e o do investimento e dar preços diferentes à mesma moeda. As taxas de câmbio se multiplicaram e o mercado negro prosperou. Como funciona a lógica da TJLP? Cria-se um fundo para garantir o seguro-desemprego (Fundo de Amparo ao Trabalhador - FAT). Remunera-se esse fundo com taxas abaixo das taxas de empréstimo do BNDES. O esquema rouba o trabalhador com uma mão e entrega, com a outra, os recursos assim obtidos a um grupo escolhido no jogo de interesses entre políticos e alguns empresários. No lugar de crédito direcionado, subsídios e renúncias fiscais para os setores privilegiados, os gastos do governo seriam mais bem alocados no investimento em infra-estrutura e na disseminação de inovações tecnológicas. O governo faz o contrário do que recomendam a teoria e a experiência dos países bem-sucedidos. Em janeiro de 2005, os desembolsos do BNDES aumentaram 85% em relação a janeiro de 2004, vangloria-se Mantega. A TJLP artificialmente baixa e o aquecimento da demanda explicam o fenômeno. O resultado primário das contas fiscais, que exibe um superávit cíclico e pode desaparecer quando a economia esfriar, esconde os problemas. Enquanto isso, a Selic sobe em dobro na tentativa frustrada de contrabalançar a incoerência do governo. Agora só falta reduzir a TJLP em março e chamar Hugo Chávez para festejar o casamento do Estado máximo com o BNDES populista. Nesse baile, vale comparecer de poeta fingidor. Aquele que "finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente".