Título: Previdência como instrumento de redução das desigualdades
Autor: Caetano , Marcelo Abi-Ramia
Fonte: Valor Econômico, 02/05/2008, Opinião, p. A8

A marcante desigualdade da distribuição de renda permanece um dos principais desafios para a sociedade brasileira. As diferenças são consideráveis em qualquer aspecto analisado: gênero, raça, regiões, entre outros.

Algumas comparações internacionais comprovam o argumento. No Brasil, os dez por cento mais ricos recebem 50 vezes mais que os dez por cento mais pobres. Esse valor é alto mesmo para padrões latinoamericanos caracterizados pela desigualdade. No México essa relação fica em 25 e no Chile em 32. O quociente é menor também para outros países emergentes como Rússia, que apresenta valor de 13, e China, com 22.

Uma faceta das desigualdades são as diferenças regionais em que há cidades com capacidade de geração de renda por meio de atividades econômicas nos setores de agricultura, indústria e serviços e outras com escassas possibilidades de geração de salários e emprego para sua população.

Em recente estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), procurei mostrar que a Previdência Social no Brasil funciona como um grande instrumento de distribuição regional de renda, em que os municípios de maior produto transferem renda por meio de benefícios previdenciários para aqueles mais pobres. Diferentes formulações estatísticas confirmaram essa hipótese. Por exemplo, mesmo ao se levar em consideração o impacto de variáveis demográficas, a elevação de um por cento do Produto Interno Bruto (PIB) municipal aumenta em 0,66 por cento a razão entre arrecadação e despesa previdenciária do município. De modo análogo, indicador convencional de desigualdade como o índice de Gini aponta desigualdade em termos de PIB per capita municipal quase quatro vezes superior à distribuição do benefício médio previdenciário dos municípios.

-------------------------------------------------------------------------------- Dado o contexto marcado por desigualdades, políticas reativas que dão o peixe são ao menos atenuantes importantes --------------------------------------------------------------------------------

Em outras palavras, cidades de maior atividade econômica, como São Paulo e Rio de Janeiro, recolhem contribuições previdenciárias em montante superior ao que recebem de benefícios. Por sua vez, diversos municípios pobres do interior arrecadam pouco, mas recebem proporcionalmente altas transferências na forma de aposentadorias e pensões.

Um ponto relevante é a análise da eficiência do sistema previdenciário como instrumento de redução de desigualdades regionais. A intuição inicial indicaria uma resposta negativa pelo fato de simplesmente se transferir renda sem o respectivo surgimento de condições que venham a garantir o dinamismo das economias locais. Dois aspectos se destacam. Em primeiro lugar, as transferências se realizam para grupos idosos com baixo potencial de agregação futura de valor. Em segundo lugar, o condicionante das transferências previdenciárias são variáveis pretéritas ou dadas para o indivíduo como idade do beneficiário, tempo passado de contribuição, atividade exercida, entre outros, isto é, não se criam condicionantes neste tipo de transferências a ações que aumentem a produtividade e a capacidade de geração de renda das economias locais.

Apesar desses problemas, como as transferências previdenciárias são focadas no indivíduo, há menor potencial de criação de distorções que políticas de reduções de desigualdade baseadas no lugar. Em primeiro lugar, ação pública com foco em uma área geográfica específica se sujeita mais ao clientelismo e à pressão de lobbies políticos que as focadas nas pessoas. Em segundo lugar, muitas dessas ações tendem a concentrar mais a renda nessas regiões porque em diversos momentos privilegiam a instalação de atividades econômicas que utilizam de modo intensivo capital físico ou humano que são escassos nessas áreas. Dentro destas circunstâncias, ampliam a demanda desses fatores de produção em detrimento da procura por pessoal pouco especializado, o que tende a reproduzir e ampliar as desigualdades entre as classes sociais locais.

Outro aspecto positivo da Previdência como instrumento de redistribuição é o abrandamento de sintomas do passado que marcam o Brasil por sua peculiar desigualdade tanto entre regiões como entre indivíduos, o que é muito positivo como uma solução de curto prazo para um problema estrutural. Porém, não se atacam as causas fundamentais das desigualdades, que somente se reduzirão quando houver a real capacidade de geração de renda e crescimento sustentável das economias locais. Ao contrário, como os recursos públicos são escassos, os gastos com benefícios previdenciários deixam de se alocar para saúde, educação ou infra-estrutura, que trariam maior potencial de dinamizar o potencial produtivo dos indivíduos dessas economias locais. De modo análogo, para financiar gastos elevados exige-se tributação alta, o que não cria incentivos para um ambiente propício aos negócios e à tomada de risco. Até mesmo os incentivos são, desse ponto de vista, inadequados, porque se garante que a perpetuação da pobreza local aumentará a probabilidade de recebimento de transferências previdenciárias. Trata-se, portanto, de um arcabouço eficaz para atenuar as desigualdades regionais no curto prazo, mas que, em tese, mostra-se ineficiente em alterar a essência do problema no longo prazo.

Em suma, dado um contexto marcado por desigualdades, políticas reativas que dão o peixe são, se não imprescindíveis, ao menos importantes atenuantes. Entretanto, não atacam a raiz do problema, apenas alcançado por políticas pró-ativas, que ensinem a pescar, e criem as condições para que as pessoas dessas localidades alcancem a independência das transferências governamentais no futuro, ao garantir a geração de renda por meio de suas próprias atividades econômicas.

Marcelo Abi-Ramia Caetano é economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) m_abiramia@yahoo.com.br