Título: No horizonte do PT, surge a próxima crise
Autor: César Felício
Fonte: Valor Econômico, 17/02/2005, Política, p. A5
Consumada a perda da hegemonia na Câmara dos Deputados, a cúpula do PT começa a antever, apreensiva, o embrião da próxima crise, dentro das suas próprias fileiras. A derrota na eleição da Mesa Diretora faz parte do novo problema, mas não a praticamente certa punição ao deputado mineiro Virgílio Guimarães. O derrotado candidato avulso conseguiu unir o partido, contra si, de uma maneira raramente vista nos últimos anos. Tentou construir sua candidatura unindo ressentimentos contra o governo fora do PT, e não dentro da sigla. Deve receber apenas a solidariedade de parte da seção mineira do partido. O problema chama-se divisão do campo majoritário em relação ao governo federal e o combustível para sua explosão será o processo de eleição interna que a sigla terá neste ano. Já está ficando claro, para os críticos da gestão de Antonio Palocci no Ministério da Fazenda, que o ministro conta com o respaldo integral do presidente. Não há mudança de rota possível. A curto prazo, perdeu-se a veleidade de reverter este quadro. E esta conclusão irá se tornar mais clara ao longo do ano, com a sucessão de debates internos, que culminará na reeleição de José Genoino para a presidência do PT e na revisão do programa partidário. O diagnóstico traçado por um membro da Executiva nacional petista é que o diálogo dentro do partido sobre a política econômica acabou, foi vencido por Palocci e a conversão petista à auto-proclamada "esquerda moderna e democrática" terá conseqüências. No comando do PT, teme-se em particular a reação de uma das tendências, a Democracia Socialista. Esta tendência é a ponte que resta entre as correntes de esquerda e o Palácio do Planalto. A DS tem lugar na Esplanada, por meio do ministério do Desenvolvimento Agrário, ocupado por Miguel Rossetto. Cruzou uma fronteira na direção à fidelidade governista quando não desembarcou do partido no momento em que uma de suas integrantes, a senadora Heloísa Helena, foi posta para fora do partido. Mas esta tendência continua vinculada à uma das três versões de Internacional Socialista de corte trotskista que existem atualmente. Chegou ao conhecimento de integrantes da cúpula petista um recado dado à DS diretamente de Paris, sede desta Internacional radical. É uma mensagem em que os esquerdistas brasileiros instalados no poder são cobrados. O tom é impositivo. Segundo membros da DS, guardam a arrogância das avaliações do FMI sobre o cenário nacional. Sugere-se que Rossetto desembarque do governo. Outras duas recomendações são feitas: reagrupar a esquerda petista e cooperar com a estruturação do P-Sol, o partido de Heloísa Helena. A interferência externa irritou os dirigentes da tendência. Ainda que tenha aquecido os debates sobre a participação no governo no plano interno, será, de uma maneira geral, ignorada. A linha estratégica que deve prevalecer vai em outra direção. A direção temida pelo grupo que controla o PT. Não se pensa em aproximação com a sigla que a senadora tenta colocar de pé. O que se busca é constituir uma frente dos insatisfeitos com o governo, que transcenda as já conhecidas correntes radicais e envolva também integrantes do grupo que manda no partido. O movimento já começou em janeiro, por iniciativa da DS e de outra corrente radical, a Articulação de Esquerda, além de outras tendências menores e de personalidades independentes. Eles divulgaram um texto, a "carta aos petistas e às petistas", que se pretende o ponto inicial para um "aggiornamento" no partido.
Teme-se a divisão do campo majoritário
Caso este movimento seja bem sucedido, aumenta o fosso divisório entre o governo federal de um lado, e a militância tradicional, do outro. Para os articuladores desta ação, pode ser a oportunidade de se pressionar Lula e Palocci. A presidência de Severino Cavalcanti, diminuindo o espaço institucional do PT, colocou novos argumentos à disposição para os idealizadores da iniciativa. Um dos ideólogos da DS, o ex-prefeito de Porto Alegre e deputado estadual Raul Pont imagina que seria uma forma de contrapor a força do partido à barganha congressual. "Queremos mostrar que é possível construir uma governabilidade diferente, fora do âmbito parlamentar. O Lula foi eleito pelo PT e depende do partido" diz Pont. Deixa no ar a sugestão de que é melhor ficar nas mãos dos velhos companheiros do que nas de Renan Calheiros e Severino Cavalcanti. Cabe a questão se "governabilidade fora do Congresso", no limite, não encerra o risco de uma reação oposicionista de mesmo vigor em sentido contrário: a contestação à ordem se manifestando nas ruas, transbordando dos limites institucionais. Algo parecido acontece na Venezuela. Para os que temem o movimento das esquerdas, o resultado final ficará muito longe disso: o mais provável é que Lula se divorcie das suas bases tradicionais. Tudo o que se conseguirá será a criação de um complicador na reeleição de Lula, ao consolidar dentro do PT um foco de oposição ao governo federal. No pior cenário, o de que o crescimento econômico de 2004 não se repita e o país volte para a estagnação, o presidente perderia o apoio dos movimentos sociais e da militância radical sem ter garantido o suporte dos esquemas regionais de poder do PMDB. Os demais aliados do Planalto, PTB, PL e PP, possuem existência apenas parlamentar e não contam como forças eleitorais para 2006. Se não está conseguindo construir alianças partidárias à sua direita, muito menos Lula conquistou a simpatia dos setores que tradicionalmente garantem força para o PSDB. O atual presidente terá percorrido uma trajetória da esquerda para a direita, parando no meio do caminho. É um horizonte em que se pode perder uma eleição em que o candidato do PT é visto como um favorito inconteste. Um drama que os cardeais petistas já encenaram outras vezes, não apenas na noite desastrosa de segunda-feira.