Título: Fundos soberanos e os múltiplos corpos do rei
Autor: Andrade , Rogério Emílio
Fonte: Valor Econômico, 12/05/2008, Opinião, p. A12

O processo de integração internacional dos mercados financeiros pulverizou os pressupostos da soberania: os Estados nacionais afrontam crescentemente problemas técnicos de grande dimensão, que exigem cooperação internacional com o objetivo de lograr coordenação de políticas concertadas nos planos regional e global.

Evidencia-se, portanto, o abandono da percepção do direito do soberano como portador de aura que lhe garante autoridade e legitimidade e, simultaneamente, vê-se a conformação de um Império sem centro, onde o rei, entendido como o responsável pelas decisões de poder, não pode mais ser situado em um único lugar.

Por isso, hoje o rei apresenta-se como se tivesse múltiplos corpos, os quais, afora os tradicionais locais políticos, transitam também pelos fluxos financeiros mundiais, permeiam transações comerciais globais, passam pelas grandes redes de informação e incorporam-se nas decisões de investimento dos fundos soberanos.

Ao olhar para os fundos soberanos - sovereign wealth fund (SWF) -, que geralmente são constituídos por reservas internacionais de um país acumuladas no processo internacional de trocas de bens e serviços, cujas decisões de investimentos obedecem a diretrizes estabelecidas por Estados Nacionais, é possível revelar como estes mecanismos de poder começaram a se tornar economicamente vantajosos e politicamente úteis.

Aliás, com relação aos fundos soberanos, é possível ver um antagonismo latente entre as opiniões acerca do impacto de suas decisões sobre a economia global, bem como a licitude dos reais objetivos desses fundos camuflados sobre o véu das diretrizes à eles impostas pelos governos detentores, o que revela um inter-relacionamento entre o jurídico, o político e o econômico dessas diretrizes.

Analisando esse antagonismo, coloco, de um lado, os que têm os fundos soberanos como algo positivo, apontando a importância de seu direcionamento para mercados emergentes, aprimorando e dando sofisticação aos mercados financeiros; e de outro lado, os que vêem nesses vultosos fluxos financeiros tanto verdadeiras ameaças sobre setores estratégicos dos países aos quais são direcionados, quanto fomento de anomalias em razão do excesso de liquidez que produzem em determinados mercados, como foi o caso, por exemplo, do setor de hipotecas norte-americano.

-------------------------------------------------------------------------------- Os investimentos dos fundos soberanos devem ser baseados em fatos de mercado, e não em metas geopolíticas --------------------------------------------------------------------------------

Além disso, em um mundo onde inovação e tecnologia são chaves não só para a conquista de mercados altamente competitivos, mas condições para a própria conquista de mercados e até mesmo permanência naqueles já conquistados, a participação estratégica, por meio de investimentos realizados por fundos soberanos, em companhias detentoras de tecnologia de ponta e fornecedoras de suprimentos escassos, pode, senão assegurar, ao menos ampliar as perspectivas de poder econômico e político de determinados Estados.

São essas razões que levam países como França, Espanha e Alemanha a considerarem a possibilidade de vedarem a aquisição de determinadas indústrias a investidores estrangeiros. Até mesmo os Estados Unidos, pátria do liberalismo econômico, pressionam fortemente o Fundo Monetário Internacional (FMI) para criar regulamentações que permitam abrir as caixas-pretas dos fundos ante a preocupação crescente com a habilidade de esses fundos adquirirem investimentos estratégicos.

Neste sentido, constitui passo relevante o acordo celebrado no último dia 27 de março, entre o governo americano e os fundos soberanos dos governos de Cingapura e Abu Dhabi, indo ao encontro das tentativas de desenvolvimento de um código de boas práticas para os fundos soberanos, estabelecendo princípios indicativos para os investimentos desses fundos nos EUA.

Do lado receptor dos investimentos, o acordo assegura aos EUA, como país recipiente das riquezas geridas por tais fundos, que: 1) as decisões de investimento desses fundos soberanos devem ser baseadas em fatos de mercado, ao invés de buscar atingir metas geopolítico-soberanas do governo controlador; 2) os fundos se comprometem a promover a transparência na gestão dos seus recursos e, conseqüentemente, reduzir o grau de incerteza dos mercados financeiros dos países recipientes, por meio da divulgação de seus propósitos, objetivos de investimento, arranjos institucionais e disponibilização de informações; 3) os fundos soberanos devem buscar sólida estrutura de governança corporativa, controles internos e operacionais, além de criar sistemas de gerência de risco; 4) os fundos soberanos e os fundos geridos pelo setor privado da economia devem se sujeitar ao jogo competitivo de mercado; e 5) os fundos soberanos se comprometem a respeitar as regras do país recipiente e a submeter-se aos seus órgãos reguladores e às exigências de transparência feitas pelo país receptor dos investimentos.

Por outro lado, o mesmo acordo garante aos governos dos fundos soberanos signatários que os EUA: 1) não estabelecerão barreiras protecionistas para formação de portfólio ou para Investimento Estrangeiro Direto (IED); 2) assegurarão estruturas previsíveis de investimento, disponibilizando publicamente regras de investimento, que garantam a possibilidade de planejamento dos investidores; 3) não discriminarão nem criarão diferença entre investidores; e 4) respeitarão as decisões de investimento dos fundos soberanos como autônomas, de forma que as restrições que venham impor aos investimentos por razões de segurança nacional devam se mostrar proporcionais aos riscos levantados pela transação.

Em suma, mesmo reconhecendo o antagonismo latente entre as opiniões acerca do impacto das decisões de investimentos dos fundos soberanos sobre a economia global, bem como os questionamentos sobre a licitude dos seus reais objetivos, a aceitação consensual de tais regras constitui relevante passo na interação entre o político, o jurídico e o econômico.

No Brasil, no momento em que se fala na hipótese de criação de um fundo soberano, é importante procurar incorporar as reflexões presentes na experiência internacional ao debate que se inicia sobre o papel do Estado brasileiro como receptor de investimentos dos fundos soberanos e como protagonista de Investimento Estrangeiro Direto por meio de seu próprio fundo soberano.

Rogério Emílio de Andrade é Advogado da União, autor de "O preço na Ordem Jurídica", organizador de "Regulação Pública da Economia no Brasil" e co-organizador de "Parceria-Público Privada".