Título: Crise nos EUA não chegou nem na metade
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 12/05/2008, Finanças, p. C10
David Rosenberg, economista-chefe da Merrill Lynch para os Estados Unidos: "Perdas podem chegar a US$ 1 trilhão" O sistema financeiro internacional vai terminar a crise de crédito americana muito menor, com menos participantes e mais regulado. Essa é a visão do economista-chefe para os Estados Unidos da Merrill Lynch, David Rosenberg, para quem o pior ainda não passou. "Quão estável ficará realmente o sistema financeiro se a economia entrar em recessão mais profunda e a taxa de desemprego subir para novos níveis de alta, dada a correlação dessa taxa com a inadimplência no crédito?", pergunta.
Rosenberg diz que a tendência das bolsas dos EUA ainda é de baixa, apesar da calmaria de curto prazo. Para ele, as eleições e a pequena popularidade do presidente Bush e do Congresso têm impedido que o governo adote as medidas fiscais necessárias para ajudar o país a sair da crise. Em sua primeira visita ao Brasil, no final de abril, ele concedeu esta entrevista:
Valor: Há analistas que consideram que o pior nos mercados já passou. O senhor concorda?
David Rosenberg: É como um livro. E o livro terá muitos capítulos. Acho que nós estamos claramente em um período de relativa calmaria e tranqüilidade. Mas, é preciso lembrar que, depois do estresse no início de 2007 no mercado de hipotecas de alto risco, nós entramos em um período de tranqüilidade. Mas, ele persistiu? O mercado caiu e atingiu uma nova alta em junho. Depois, despencou e atingiu um novo pico em outubro. Depois piorou.
Valor: O senhor acha que a crise ainda vai demorar, portanto.
Rosenberg: Eu não estou nem certo que nós passamos a metade da crise de crédito. Ela ainda vai tomar as mais diferentes formas. Pode ser que nós já tenhamos passado o pior em termos de hipotecas de alto risco. Mas, será que nós passamos o pior em termos do setor imobiliário em geral? Em termos de cartões de crédito? Em termos de financiamento ao consumo? A questão é como nós estimamos e como nós passaremos por uma recessão no consumo. Nós não tivemos uma recessão no consumo no ano passado. No ano passado o que tivemos foi uma deflação de 10% no preço das moradias e a incapacidade de detentores de moradias de pagar prestações da casa própria quando elas foram renegociadas. O ano passado foi um ano horrível em termos de baixas contábeis dos bancos: mais de US$ 100 bilhões. Houve crescimento de 75% nos despejos de mutuários. Mas, isso foi em um contexto de uma economia americana que se expandiu mais de 2% em termos reais e gerou mais de 1 milhão de novos empregos.
Valor: O senhor vê uma recessão hoje nos Estados Unidos?
Rosenberg: Sem dúvida. A recessão começou em janeiro. Não houve uma queda no Produto Interno Bruto no primeiro trimestre. Mas, o PIB foi positivo por causa do acúmulo de estoque e do aumento das exportações. Se você olhar os números, a demanda doméstica final foi negativa. Também verificamos todas as outras clássicas características de uma recessão como queda no nível de emprego, na produção industrial, de manufaturas, de vendas no varejo e na renda pessoal real. Nós estamos no começo de uma recessão que poderá afetar de forma determinante o consumo de bens supérfluos, como em 1973 a 1975. Essa não é a recessão de gastos de capital de 1990 a 1991 e nem a clássica recessão do setor imobiliário do início dos anos 1990. Será a primeira significa recessão no consumo desde meados dos anos 1970.
Valor: Quanto tempo essa recessão vai durar?
Rosenberg: Este ano, no mínimo. O problema é que o ritmo da deflação no setor imobiliário está na verdade crescendo. Por enquanto, eu não vejo nenhum sinal de que nós chegamos no piso dos preços. Os estoques de moradias continuam a se acumular. No nível atual, nós vamos demorar 20 meses, quase dois anos, para absorver todo esse estoque. Teremos portanto mais dois anos de deflação no setor imobiliário. Veja o tipo de choque que isso terá na economia. Por isso, é prematuro dizer que a crise financeira acabou depois de semanas de relativa tranqüilidade. O preço das casas já caiu 15% do pico e deve cair mais 15% a 20%.
Valor: Qual o impacto dessa deflação na economia?
Rosenberg: Quem fala que o setor de moradias representa 5% do PIB pensa só no setor de construção civil. As moradias como classe de ativos representam um total de US$ 23 trilhões, 115% do PIB. Não há nada tão grande no planeta quando o setor de moradias residenciais nos EUA.
Valor: Analistas falam em recuperação no segundo semestre...
Rosenberg: Essas pessoas estão prestando atenção suficiente no estrangulamento do crédito? Nós temos uma inflação de alimentos e energia pronunciada. Isso tem impacto no consumo. Nós temos um mercado de ações com tendência para queda, apesar de um rali de curto prazo, e um mercado de moradias com tendência de queda de preços. É um duplo impacto no bolso dos consumidores. E, acima de tudo isso, nós temos o desemprego aumentando. O único estímulo que eu vejo são os tax checks (o Tesouro vai distribuir mais de US$ 110 bilhões para 130 milhões de contribuintes que solicitaram retornos de seus impostos em 2007). A grande dúvida é: onde as pessoas vão gastar esses recursos? Hoje um número recorde de americanos está com o pagamento de luz, água e telefone atrasado, além da assistência médica, do aluguel, do leasing de carros, das hipotecas. Os tax checks vão ajudar, mas por um período de dois meses. É um impacto temporário. Você sempre quer ser esperançoso. Mas, no negócio de fazer previsões para auxiliar administradores de recursos, o que é importante é ser realista.
Valor: O corte de juros pelo Fed não ajuda a reerguer a economia?
Rosenberg: Nos anos 50 e 60, quando você teve recessões de excesso de estoque de bens de consumo duráveis, uma queda de juros ajudou. Nos anos 70 e 80, você teve recuperações fortes. Mas, o que você vê hoje é uma fase de deflação de ativos, de estrangulamento de crédito. É uma fase de desalavancagem pós-bolhas, como no início dos anos 90 e no último ciclo, de 2001. Você pode não ter recessões muito profundas. O que você tem é um tempo prolongado no qual o lado da demanda falha em se manter em compasso com o lado da oferta. Foi o que aconteceu no Japão nos anos 90: mesmo quando a economia crescia, ela não crescia muito. Se você quiser dizer que no Japão só houve recessão de julho de 1990 até março de 1991, vá em frente. Tecnicamente você estaria certo. Mas, houve um ciclo de 1989 a 1993 de doença na economia, quando os bônus se saíram melhor do que as ações. As taxas de desemprego subiram, o uso da capacidade instalada caiu, margens de lucros ficaram sob pressão. O que sabemos dessas fases pós-bolhas, que têm forte desalavancagem, é que elas não são medidas em trimestres, mas em anos. As pessoas que acham que a recuperação acontecerá agora, não sei de onde elas tiram isso. Acho que é apenas da esperança e das orações. Não é uma estimativa realista.
-------------------------------------------------------------------------------- Os americanos estão sufocando sob o peso dos pagamentos recordes de suas dívidas e por isso a inadimplência cresce" --------------------------------------------------------------------------------
Valor: O senhor vê uma armadilha de liquidez em andamento?
Rosenberg: Absolutamente. Embora o Fed tenha cortado os juros 325 pontos básicos desde setembro, a média dos juros privados só caiu 50 pontos básicos. Há 12 meses, você só precisava ter pulso para conseguir um empréstimo. Você não precisava ter um emprego ou uma história de crédito. Hoje, se você quer um empréstimo, você tem que provar que está pagando sua conta de luz, água, eletricidade, telefone, que você está pagando suas contas médicas. Não há apenas um aumento no custo do crédito, mas há também mais dificuldades em obter novas linhas. O Fed subiu os juros em 2004, 2005 e 2006 e a economia continuou a crescer. E o crédito acelerou. Agora, nós estamos passando o mesmo filme de trás para frente. O Fed está reduzindo os juros, mas a disponibilidade de crédito está contraindo e a inadimplência, crescendo. Isso é uma armadilha de liquidez clássica. Isso significa que o Fed terá de manter os juros mais baixos do que vinha mantendo por mais tempo.
Valor: Por qual razão a inadimplência começou a crescer?
Rosenberg: Não apenas você tem uma relação recorde entre a dívida e o PIB, de 140%. Em 2001, era de 100%. Os detentores de casas hoje estão gastando mais com serviço da dívida do que estão gastando com comida na mesa. O pagamento de juros da dívida está absorvendo mais do que 40% dos gastos das famílias, na média, um recorde. Os americanos estão sufocando sob o peso dos pagamentos recordes de suas dívidas. O que as pessoas não entendem é que todo esse crédito foi o tanque de oxigênio para a última expansão econômica. Nós nunca vimos um ciclo anterior que fosse tão alavancado como esse último foi. E agora ele está andando para trás.
Valor: Quais serão as perdas totais no sistema financeiro?
Rosenberg: Até agora, as perdas foram de US$ 300 bilhões. Mas, com a contaminação nos outros tipos de crédito, eu diria que as perdas não serão menores do que US$ 750 bilhões. Se eu estiver certo no meu prognóstico sobre o setor de moradias, provavelmente chegaremos a US$ 1 trilhão. Se eu estiver certo na taxa de desemprego de 6,5%, provavelmente chegaremos em US$ 1 trilhão. Você não está falando apenas das perdas com a marcação a mercado, mas das perdas com o total dos empréstimos. Há uma relação direta entre taxa de desemprego e inadimplência. Por esse critério de perdas, a crise não chegou nem na metade.
Valor: O bancos vão conseguir levantar capital suficiente para fazer frente a perdas de US$ 1 trilhão?
Rosenberg: Provavelmente não. Eles começaram com dívida subordinada e depois foram para ações. Obter capital neste momento para os bancos além de difícil é caro. Isso vai pesar fortemente nas margens líquidas e afetar a lucratividade futura do setor. Corte de dividendos e redução nos balanços serão necessários. Parte dos negócios serão vendidos. O setor financeiro vai terminar essa crise muito menor, com menos participantes e mais regulado. As agências de rating terão de mudar a forma que elas fazem seus negócios. A indústria terá um preço a pagar pelo fato de os bancos de investimento terem usado o balanço do Fed. Eles foram tratados como bancos comerciais. Então, acho que a super alavancagem de 31 vezes não vai acontecer de novo. Para os bancos comerciais, a habilidade de tirar ativos de seu balanço por meio de veículos como conduits e SIVs será limitado. Vai mudar a forma como o capital é alocado nessas entidades.
Valor: Há os que defendem uma política fiscal mais ativa...
Rosenberg: Eu concordo. A solução está no lado fiscal. Se você olhar para a Suécia, em meio a uma crise bancária, o governo cortou juros, mas nacionalizou bancos, fechou bancos. E, chegou a um ponto no qual o governo passou a deter 20% do sistema financeiro. No Japão, também foi o governo que socorreu as instituições financeiras. Mas, até agora, a resposta fiscal nos Estados Unidos foi tépida, inadequada.
Valor: Por quê?
Rosenberg: Parte disso é por causa das eleições americanas. O presidente Bush tem uma taxa de aprovação muito baixa, mas as taxas de aprovação do Congresso estão ainda mais baixas. O Congresso tem taxas de aprovação de 19%, enquanto o presidente tem taxas de 32%. E quem está com a maioria no Congresso? Os democratas. O problema é que as pesquisas de opinião mostram que apenas uma minoria dos americanos apóia o socorro dos bancos com dinheiro público.
Valor: Há programas de ajuda aos mutuários em andamento.
Rosenberg: Até agora se falou mais de uma política social em vez de uma política econômica. O governo está focando sua atividade em pessoas que estão correndo o risco de serem despejadas. Mas o problema fundamental é a falta de capital no sistema financeiro americano e o grande impacto da deflação no setor imobiliário na economia.
Valor: Como a crise vai impactar os mercados financeiros?
Rosenberg: Eu não acho que os ativos financeiros estão com isso tudo embutido nos seus preços. A questão é: quão estável ficará realmente o sistema financeiro se a economia entrar em recessão mais profunda e a taxa de desemprego subir para novos níveis de alta, dada a correlação dessa taxa com a inadimplência no crédito? Eu nunca vi uma recessão que não fosse desestabilizadora para ativos financeiros. Se tomarmos o mercado de moradias, a instabilidade geral vai continuar conosco até o final de 2009. Isso não significa que todo o mês será um mês ruim. Isso significa que, na média, você vai ver mais volatilidade, mais fraqueza no mercado e rendimentos mais baixos para os títulos do Tesouro americano e maior ênfase nos ativos de alta qualidade e baixo risco.