Título: Crise com ruralistas expõe vulnerabilidade argentina
Autor: Rocha , Janes
Fonte: Valor Econômico, 20/05/2008, Internacional, p. A10

A crise entre os agricultores e o governo expôs a mais recente vulnerabilidade da Argentina: a dependência das commodities agrícolas para as contas públicas. Há dois meses, o governo está medindo forças com os produtores rurais por causa de um aumento de impostos sobre as exportações de grãos. As tentativas de negociação fracassaram até agora porque nenhum dos dois lados quis ceder.

A instabilidade política causada pela disputa fez com que, na contramão do mundo, o dólar se valorizasse na Argentina. A moeda americana chegou a superar os 3,20 pesos no mercado paralelo, obrigando o Banco Central a intervir fortemente para segurar a cotação a 3,177 para venda e 3,164 para compra, no fechamento de ontem. Nesse esforço, o BC gastou US$ 1 bilhão das reservas internacionais, que agora estão abaixo do valor simbólico de US$ 50 bilhões, tão comemorado ao ser atingido no início do ano. Na sexta, as reservas estavam em US$ 49,2 bilhões.

O motivo da disputa entre os agricultores e o governo é uma questão-chave para a solvência fiscal do país: a arrecadação tributária. O imposto contra o qual os produtores rurais se debatem é a chamado "retenção", um tributo aduaneiro, sem devolução nem co-participação com as províncias, que incide sobre vários produtos (soja, girassol, trigo, milho, combustíveis e minerais).

Aproveitando-se de um excelente cenário internacional para seus produtos de exportação, com preços recordes para as commodities agrícolas e minerais, o governo argentino elevou significativamente as retenções.

Marina dal Poggeto, diretora do Estudio Bein, uma consultoria econômica, calcula que a carga tributária subiu dez pontos percentuais nos últimos cinco anos, dos quais 4,5 pontos vieram das retenções sobre as exportações. Segundo ela, o tributo aduaneiro já arrecada o equivalente a 120% do superávit primário do governo e 15% da arrecadação total em impostos.

O dólar desvalorizado frente às principais moedas internacionais completou o cenário benigno que ajudou o país a se recuperar da crise de 2002. O crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) a taxas anuais acima de 8% nos últimos seis anos, impulsionou a arrecadação de impostos, que vem batendo recordes quase todos os meses. Em abril, aumentou 52,4%, em relação ao mesmo mês do ano passado, totalizando 20,2 bilhões de pesos (cerca de US$ 6,4 bilhões), segundo dados da Administração Federal de Rendas Públicas (Afip, na sigla em espanhol, equivalente à Receita Federal brasileira).

Por conta da maior arrecadação tributária (principalmente com o IVA e impostos sobre a renda e movimentação financeira) e das retenções sobre as exportações, o superávit primário do governo atingiu 2,8 bilhões de pesos em abril, com alta de 73% em comparação ao mesmo mês de 2007.

Em contrapartida, há dois fatores de risco, segundo o economista Lucas Llach, da Universidade Torcuato di Tella. "Os grandes riscos da economia argentina são o descontrole da inflação e a forte dependência das matérias-primas."

O casal Kirchner, que governa a Argentina desde 2003 (primeiro o marido, agora a esposa), não admite a alta real dos preços, estimada em até 25% anuais, e sustenta medidas heterodoxas para conter uma inflação que, dizem, não passa de 8,5% (o índice oficial), gerando cada vez mais desconfiança na economia do país. Neste contexto, a minicorrida ao dólar da semana passada faz sentido, diz Llach. "As pessoas estão vendo que a inflação real é muito maior que a oficial, que a Argentina já não é mais um país barato, e tentam se proteger."

A hipótese de queda nos preços dos produtos agrícolas apareceu no cenário mais recentemente, quando se descobriu que a recessão nos EUA não é tão grande quanto se pensava. Isso significa que o dólar pode começar a subir, e os preços das commodities, a baixar. "Estamos muito atados aos preços internacionais. Se eles caírem vai ser um grande problema", reitera Marina Dal Poggeto.