Título: Aquecimento global abre rota marítima no Ártico
Autor: Rittner, Daniel
Fonte: Valor Econômico, 19/05/2008, Internacional, p. A9

O derretimento das geleiras do Ártico, um dos efeitos mais evidentes do aquecimento global, está criando novas rotas marítimas no Pólo Norte que poderão derrubar os custos logísticos do comércio mundial, além de impor desafios na estratégia de segurança aos países próximos da região. Grandes empresas internacionais de navegação dizem que já existem condições climáticas de trafegar pelo Ártico durante boa parte do ano e aguardam apenas uma definição sobre a posse das águas para explorar regularmente esses caminhos.

O colapso das calotas polares ocorre em velocidade assustadora. A parte do gelo marinho que derrete a cada verão é cada vez maior - e a parte que recongela no outono, cada vez menor. A tal ponto que, no último verão setentrional, a camada de gelo no Ártico equivalia, em extensão, a apenas metade do que era há 50 anos. Isso cria um círculo vicioso para as mudanças climáticas, já que a água absorve a radiação solar e ajuda a elevar a temperatura do planeta - ao contrário do gelo, que reflete essa mesma radiação. O resultado é que o aquecimento tende a aumentar mais.

Esse fenômeno, percebido com maior clareza ao longo da última década, dá a largada para uma revolução na marinha mercante. Duas rotas historicamente fechadas para a navegação começaram a se abrir, conforme explica Danilo Ramos, engenheiro brasileiro que ocupa o cargo de gerente de projetos da multinacional francesa CMA CGM, com sede em Marselha. A Passagem Noroeste, sobre o Canadá, que costumava ter não mais de dois meses e meio de rotas navegáveis, hoje se abre ao tráfego marítimo por até cinco meses, viabilizando o transporte regular de mercadorias. A Passagem Nordeste, sobre a Rússia, tinha um período de navegabilidade entre junho e outubro - hoje esse período se estende até dezembro.

O tamanho do impacto da abertura dessas passagens pode ser facilmente sentido em duas ligações de enorme fluxo comercial. A ligação Nova York (EUA)-Yokohama (Japão), com extensão de 18.560 quilômetros através do Canal do Panamá e de 25.125 quilômetros pela alternativa do Canal de Suez, se encurta para 15.220 quilômetros usando a Passagem Noroeste. Já a ligação Hamburgo (Alemanha)-Vancouver (Canadá), com extensão de 17.310 quilômetros através do Canal do Panamá e de 27.200 quilômetros pela alternativa do Estreito de Magalhães, cai para 13.770 pela Passagem Nordeste.

"O uso comercial dessas rotas é questão de tempo", resume Danilo Ramos, lembrando que elas podem diminuir os custos de frete em até 30%. Além da economia com combustíveis, que representam cerca de 50% das despesas operacionais da marinha mercante, a tendência é reduzir os gastos com as tarifas dos canais.

Para o engenheiro, a solução às pendências existentes deve demorar uns cinco anos, até que se possa utilizar regularmente as novas passagens. Por causa das calotas que resistem ao aquecimento, ainda é alto o risco de acidentes e as seguradoras não têm uma política bem definida para tratar do assunto, diz Ramos. Por enquanto, seria necessária a presença de navios rebocadoras - à frente dos navios de transporte propriamente ditos - para quebrar as geleiras que se desprenderam das grandes camadas e ficam flutuando pelo Ártico. Mas, num sinal de que há um futuro promissor no uso das rotas do Pólo Norte, "as encomendas de navios com casco reforçado na Finlândia estão no limite", observa Ramos, em referência ao país que tem uma das indústrias navais mais avançadas do mundo.

No entanto, o maior obstáculo para que essa região entre no mapa da navegação está na disputa territorial. O pesquisador Scott Borgerson, ex-tenente da Guarda Costeira americana e atualmente no Conselho de Relações Exteriores, um centro de estudos em Nova York, destaca que o derretimento do Ártico terá implicações econômicas e também na área de segurança. Rússia, Canadá, Dinamarca, Noruega (que detém a Groenlândia) e Estados Unidos (pelo Alasca) são os principais países afetados. Ele cobra liderança internacional da Casa Branca na solução dos impasses e lembra que a China, com sede por energia e de olho nas grandes reservas de petróleo da região, dificilmente vai querer ficar de fora das discussões. O potencial de conflito diplomático não é pequeno, uma vez que a Rússia sempre se considerou dona do território - antes gelo, agora oceano, que por definição é neutro, durante boa parte do ano.

"Não há normas ou regulações abrangentes sobre o uso do Ártico porque nunca se teve grande expectativa de rotas marítimas ou de desenvolvimento comercial em larga escala na região", afirma Borgerson, que recentemente escreveu um longo artigo sobre o assunto para a revista "Foreign Affairs". As estruturas internacionais que existem hoje oferecem poucos e insuficientes marcos legais. O Conselho do Ártico aborda questões ambientais, mas não entra em temas de segurança, por imposição dos Estados Unidos, desde a criação do órgão, em 1996. A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (Unclos), que se tornou uma lei internacional no mesmo ano, prevê mecanismos para a resolução de disputas territoriais e contenciosos envolvendo áreas fora das zonas econômicas exclusivas. Mas o tratado da ONU, apesar do declarado apoio de seguidos governos americanos, ainda não foi ratificado pelo Senado.

Com reservas petrolíferas que já foram estimadas pelo Kremlin em 586 bilhões de barris, segundo Borgerson - até cem vezes o potencial do megacampo brasileiro de Tupi -, o Mar de Barents (entre Noruega e Rússia) pode transformar-se logo em um novo eldorado energético e já afeta estratégias de defesa desses países.

Ake Svensson, presidente da gigante sueca Saab, que fabrica moderníssimos caças supersônicos na subsidiária Gripen, contou ao Valor uma história que resume preocupações emergentes na região. Em uma reunião recente, a portas fechadas, a ministra de Defesa da Noruega abriu um mapa-múndi à sua frente e lhe mostrou as novas rotas marítimas que ligarão o país nórdico à China, passando pela Rússia, durante o verão. "Qualquer rota comercial aberta à navegação precisa ser protegida. Isso tem implicações nas estratégias de segurança", afirmou Svensson, relatando o que lhe foi dito pela ministra norueguesa. Em abril, a Saab entregou sua proposta para a compra de até 48 caças que a Noruega pretende encomendar até 2009, renovando a sua Força Aérea. O próprio governo do país reconheceu que um dos motivos da compra é resguardar o Mar de Barents.