Título: O BNDES e a defesa da concorrência
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 19/05/2008, Opinião, p. A10

O incentivo estatal a empresas, se bem planejado e executado, efetivamente incrementa a sua eficiência, qualifica a força de trabalho, amplia as exportações e, assim, atende ao interesse final do consumidor, reduzindo preços e melhorando a qualidade e a oferta de produtos e serviços. Esse dado da experiência econômica já se acha a salvo de debates ideológicos, o que, todavia, não elimina uma questão insidiosa que toda política industrial nesse sentido traz, sobretudo tendo em conta a estrutura dos principais mercados brasileiros: como implementá-la alocando recursos escassos e não estimular, ainda que indiretamente, a concentração de poder de mercado das empresas beneficiadas.

Essa questão cabe ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), principal agente da política de incentivos estatais, enfrentar.

O montante dos empréstimos feitos pelo BNDES (www.bndes.gov.br/estatisticas/) passou de R$ 39,8 bilhões, em 2004, para R$ 64,9 bilhões, em 2007, um aumento nominal significativo, de 63%. Classificados esses desembolsos de acordo com o tomador, a evolução, no mesmo período (2004 a 2007), em termos de participação, é a seguinte: pessoa física cai de 16% para 6%; micro e pequena empresa, constante, de 8% para 9%; média empresa também de 8% para 9%; e grande empresa cresce, de 68% para 75%.

Ou seja, o perfil da carteira do BNDES já exibe uma concentração de empréstimos, e esse viés vem se acentuando.

Esse perfil concentrado da carteira do BNDES será reforçado com as grandes operações anunciadas recentemente pelo presidente da instituição. A ilustrar esse viés, distingue-se uma dessas operações, que consiste no empréstimo a controladores de uma prestadora de serviços públicos de telecomunicações para exclusivamente adquirir o controle de uma empresa congênere. Precisamente: um vultoso empréstimo de recursos públicos feito pelo BNDES e destinado à concentração, em mãos de reduzido número de acionistas privados, de empresas prestadoras de serviço público, atuantes em mercado inteiramente regulado.

-------------------------------------------------------------------------------- Concorrência é melhor modo de favorecer economia, o fomento a grupos concentrados não é o caminho apropriado --------------------------------------------------------------------------------

A Anatel e o Cade deverão analisar a operação de concessionárias financiadas pelo BNDES. Além de exercer a independência decisória e hierárquica em relação ao governo, a que estão obrigados por lei, decidirão se a nova empresa será a única concessionária verticalmente integrada a prestar serviços públicos de telecomunicação em todo o território brasileiro, com exceção do Estado de São Paulo.

Individualmente, ambas as empresas envolvidas nessa operação já ocupam incontestável posição dominante nos mercados em que atuam e, devido à rentabilidade, porte, reputação e liquidez delas, podem financiar-se junto ao mercado de capitais brasileiro, hoje apto a cumprir a sua função de mobilizar poupança privada para esse tipo de operação. Note-se que algumas das grandes operações anunciadas pelo presidente do BNDES certamente resultarão em novos e indispensáveis investimentos, particularmente em infra-estrutura. Porém, o financiamento do BNDES destinado à concentração de prestadoras de serviços regulados de telecomunicações é, exclusivamente, um financiamento voltado apenas à transferência de titularidade do controle acionário da concessionária.

Os exemplos acima configuram outra questão: a política do BNDES de concentrar financiamentos a grandes operações importará em ele, muitas vezes, beneficiar empresas que já detêm alta concentração de poder econômico de mercado. Não se pode deduzir que tais financiamentos reforcem, automaticamente, o poder de mercado dessas empresas, mas o inverso é, também, verdadeiro: não se pode excluir, mecanicamente, tal possibilidade, em especial se tais recursos fossem, diversamente, destinados a competidores dessas empresas dominantes, de menor porte e presença no mercado, ou mesmo àqueles competidores situados na mesma cadeia produtiva.

A Constituição Federal fixou a livre concorrência como um dos princípio regentes da economia e a esse fim incumbiu o Estado de prevenir a excessiva concentração de poder de mercado e reprimir o abuso do poder econômico dele decorrente. Mas também atribuiu ao Estado a função de fomentar a economia, que o BNDES exerce. Evitar a colisão dessas políticas é tarefa complexa e a ser verificada caso a caso. Se promover a concorrência é, como diz a experiência que a lei formalizou, o meio mais eficaz de beneficiar o consumidor, em qualidade, volume e preço, o fomento a grupos altamente concentrados não é o caminho apropriado.

O fomento a empresas privadas e públicas tornou-se um dos itens da pauta da defesa da livre concorrência. Isto é, ele não é mais promovido nas economias desenvolvidas sem um prévio escrutínio dos seus impactos concorrenciais. Entre nós, essa não é uma tarefa do Cade, que se limita a examinar os eventuais efeitos anticompetitivos decorrentes de atos de concentração e de condutas de empresas nos diversos mercados de bens e serviços. Mas pode - e deve ser - mais um ângulo da análise ordinária do BNDES, previamente à concessão de empréstimos a empresas com alta concentração em seus mercados. A essa análise não falta expertise ao quadro técnico do BNDES. Se ele a promover, estará alinhando as políticas públicas de defesa da concorrência e de fomento em benefício da concorrência, protegendo os consumidores e tornando mais igual a repartição do frutos do desenvolvimento econômico.

Arthur Barrionuevo é professor da FGV-SP especialista em concorrência e regulação, Conselheiro do IBRAC (Instituto Brasileiro de Estudos da Concorrência).

Pedro Dutra é advogado especialista em concorrência e regulação, Conselheiro do IBRAC.