Título: Dois erros de política econômica
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 19/05/2008, Opinião, p. A11

O FMI pode ser favorável e a medida pode até agradar as agências de classificação de risco, mas a criação do Fundo de Riqueza Soberana (FRS) no Brasil é um erro. Tomemos um exemplo simples que capta a essência do argumento. Para formar um "fundo" que no futuro custeie os estudos de seu filho recém-nascido, um casal responsável tem que reduzir seu consumo abaixo de sua renda, poupando e acumulando ativos. Obviamente seria um erro manter o consumo igual à sua renda, anulando a sua poupança, endividando-se para formar aquele fundo. E, no entanto, foi aproximadamente isto que o ministro da Fazenda anunciou.

O FRS acumula ativos em dólares, e para gerar esses dólares tem que produzir superávits nas contas correntes. A primeira coisa a entender é que os superávits nas contas correntes são a conseqüência do excesso das poupanças domésticas sobre os investimentos. É este o caso da China, que cresce aceleradamente devido às elevadas taxas de investimentos, mas cujas taxas de poupança são ainda maiores. A China poderia optar entre a alternativa de baixar suas poupanças, elevando o consumo e o bem-estar da população no presente, ou a de manter elevadas as taxas de poupança no presente, acelerando o crescimento econômico e permitindo um aumento ainda maior do consumo das gerações futuras. Optou por esta segunda alternativa, o que acarreta os superávits nas contas correntes, cujos fluxos são acumulados parcialmente no "cofrinho" do seu FRS.

Há, também, situações de países que são premiados com uma elevação permanente de renda, tendo que optar entre aumentar o consumo presente ou beneficiar as gerações futuras. É o caso da Noruega, com a descoberta do petróleo no Mar do Norte. Aquele país ficou inesperadamente mais rico ao receber um fluxo adicional de renda permanente. Em vez de gastar todo esse fluxo adicional de dólares elevando as importações e o consumo no presente, decidiu postergar os ganhos de bem-estar, beneficiando as gerações futuras, poupando aquele fluxo de renda.

Nestes dois casos, os FRS são alimentados por recursos em moeda estrangeira (dólares) provenientes de superávits nas contas correntes. Então, por que "todo mundo diz" que a condição mais importante para a criação de um FRS é a existência de um superávit fiscal? O "saber convencional" aceita o fato de que na grande maioria das vezes os déficits nas contas correntes são gerados por déficits fiscais, isto é, aceita a existência de "déficits gêmeos". Isto nem sempre é verdade, porque um déficit fiscal pode ser compensado por um excesso de igual magnitude das poupanças privadas sobre os investimentos, levando ao equilíbrio nas contas correntes, mas esta exceção serve para confirmar a "quase regra" dos déficits gêmeos. Da mesma forma como prestamos atenção aos déficits gêmeos, temos que prestar atenção aos "superávits gêmeos" e, a menos que o setor privado tenha uma poupança "chinesa", capaz de financiar elevadas taxas de investimento, os superávits nas contas correntes terão que vir acompanhados de superávits fiscais. Em adição, a "lua-de-mel" dos superávits nas contas correntes brasileiras já terminou e estamos enfrentando déficits, que com a aceleração dos investimentos serão crescentes.

-------------------------------------------------------------------------------- Uma elevação de 3,5% do PIB na taxa de investimentos requer uma elevação de no mínimo 3,5% do PIB do déficit nas contas correntes --------------------------------------------------------------------------------

Isto nos leva ao segundo erro de política econômica e, para introduzi-lo, vamos mais uma vez enunciar a identidade contábil que está por trás de todo o nosso argumento: o excesso de importações sobre as exportações (de bens e serviços) é idêntico ao excesso das poupanças domésticas (pública e privada) sobre os investimentos. Com ela em mente, olhemos para o pacote de incentivos aos investimentos anunciado pelo ministro da Fazenda. Ignoramos o fato de que foram arbitrariamente escolhidos setores "premiados", quando regras gerais deveriam estar por trás dos incentivos, concentrando-nos nos aspectos macroeconômicos. O objetivo daquelas isenções tributárias é elevar a taxa de investimentos de 17,6% do PIB para 21% do PIB. Aplausos! Pelo menos as autoridades usaram um modelo simples de fontes de crescimento para calibrar qual é a taxa de investimentos para elevar o crescimento sustentável. O que nos intriga é ignorar como serão financiados esses investimentos.

Em um arroubo de "fundamentalismo keynesiano", alguns afirmarão que "o investimento cria a sua própria poupança". Afinal, é essa a conclusão que sai daquele gráfico que coloca o consumo mais o investimento no eixo vertical, a renda no horizontal, e onde o equilíbrio é determinado pelo cruzamento da "demanda efetiva" com a reta de 450. Mas aquele modelo admite que a economia seja fechada e tenha uma oferta infinitamente elástica, e nenhuma destas duas hipóteses é realista no caso brasileiro. Será que o crescimento dos investimentos pode ser financiado pelo aumento das poupanças domésticas, ou precisará do crescimento da poupança externa? O gráfico anexo ajuda a entender o que se passará. Nele estão superpostos a taxa de investimentos (escala da direita) e as exportações líquidas (escala da esquerda), que seguem de perto as contas correntes. Esta correlação inversa nos diz que aumentos da taxa de investimentos não têm sido seguidos por aumentos correspondentes da poupança doméstica, precisando do complemento da poupança externa. A primeira conclusão é que não estamos no modelo asiático. A segunda é que, se o mesmo padrão histórico for mantido, uma elevação de aproximadamente 3,5% do PIB na taxa de investimentos requer uma elevação no mínimo de 3,5% do PIB do déficit nas contas correntes. Esta elevação pode ser sustentável ou não, mas o melhor seria que o governo fizesse um esforço de elevar as poupanças domésticas com o corte de seus gastos de consumo, rompendo com o padrão histórico que está por trás do gráfico anexo. Com isso geraria mais poupanças domésticas e menores déficits nas contas correntes.

Mas ele tem uma boa teoria - de que o investimento gera a sua própria poupança - e, no estranho mundo em que vive, se uma bela teoria for contrariada por um mero fato, jogue-se fora o fato, e o país que arque com as conseqüências do erro.

Affonso Celso Pastore e Maria Cristina Pinotti são economistas e escrevem mensalmente às segundas.