Título: Vencer o preconceito racial será o maior desafio de Obama
Autor: Balthazar , Ricardo
Fonte: Valor Econômico, 21/05/2008, Internacional, p. A9

A escola em que o empresário americano Scott Harwood estudou na infância só aceitava crianças brancas. Na sua cidade, brancos e negros não freqüentavam os mesmos restaurantes e não iam às mesmas igrejas. Ele recentemente conheceu James Lyle, que estudava na escola dos negros e que hoje pode almoçar em público com Harwood sem medo de que o expulsem da mesa.

Há poucos dias, os dois conversaram sobre a corrida presidencial americana. Harwood espantou-se ao ler nos jornais que 91% dos negros que participaram das prévias do Partido Democrata na Carolina do Norte votaram no senador Barack Obama. "Essa unanimidade me incomoda", disse ele, que é dono de uma seguradora. "É como se acreditassem que ele tem que ser presidente porque é negro e não importa quem ele seja."

Harwood está com 64 anos e pretende votar em novembro no candidato do Partido Republicano à Casa Branca, o senador John McCain. Ele acha Obama "liberal" e "inexperiente" demais para liderar os Estados Unidos.

Mas seu amigo pensa diferente. "Esta será provavelmente a última chance que terei na minha vida de eleger um negro presidente", disse Lyle, que tem 59 anos e ganha a vida fazendo negócios no mercado imobiliário.

Obama raramente fala da cor da sua pele na campanha. Ele nunca discute o significado que sua eleição poderá ter para um país que precisou de uma guerra civil para acabar com a escravidão e só parou de tratar os negros como cidadãos de segunda classe um século depois. Filho de pai africano e mãe branca, Obama prefere se apresentar como um conciliador que irá ajudar o país a curar as feridas abertas no passado em vez de reavivá-las.

Mas é impossível ignorar sua cor e o obstáculo que ela pode representar para sua candidatura. Segundo as pesquisas de boca-de-urna, 12% dos brancos que participaram das prévias democratas no Estado da Pensilvânia em abril disseram que a raça dos candidatos influiu na sua decisão, e 76% desses eleitores preferiram a ex-primeira-dama Hillary Clinton, a rival de Obama na briga pela candidatura do partido.

Esse tipo de comportamento se repetiu em outros lugares, mas é muito difícil prever o peso que o preconceito racial poderá ter em novembro. Harwood e Lyle nasceram e vivem até hoje em Farmville, uma pequena cidade do Estado da Virgínia (veja mapa) em que as marcas da segregação racial ainda são visíveis no cotidiano dos moradores. Em fevereiro, 310 eleitores de Farmville participaram das prévias dos democratas. Obama teve 211 votos e Hillary Clinton só conseguiu 99.

O presidente George W. Bush venceu as duas últimas eleições presidenciais na Virgínia, mas nos últimos anos os republicanos começaram a perder terreno. O Estado elegeu dois governadores democratas em seguida, pôs um membro do partido no Senado e deve eleger outro para a cadeira em disputa nas eleições deste ano. Obama venceu Hillary nas primárias e acha que terá condições de derrotar McCain no Estado em novembro.

Farmville tornou-se célebre pela maneira como resistiu às pressões pelo fim da segregação racial nos Estados conservadores do Sul dos EUA. Em 1959, depois que a Suprema Corte estabeleceu que a separação de brancos e negros nas salas de aula era inconstitucional, a cidade fechou as escolas públicas para não ter que misturar as crianças. Uma escola privada foi aberta para alunos brancos. A rede pública só voltou a funcionar em 1964.

Brancos e negros hoje vão às mesmas escolas, mas as sombras do passado estão por toda parte. Até recentemente havia na principal escola da cidade uma equipe de animadoras de torcida formada por alunas brancas e outra apenas com meninas negras. "Levei um ano para convencer os dois times a aceitar garotas de cores diferentes", disse a superintendente do sistema público de ensino, Patricia Watkins, primeira negra a ocupar a função.

Quase dois terços dos alunos das escolas de Farmville são negros. As estatísticas mostram que em geral seu desempenho é inferior ao dos colegas brancos. "A geração que cresceu em meio à segregação perdeu muitas oportunidades, e seus filhos sofrem por causa disso até hoje", disse o cientista político David Marion, que dá aulas numa faculdade particular da cidade. Ele é branco e fez questão de matricular os filhos nas escolas públicas quando chegou a Farmville.

Há alguns anos, o Estado deu uma segunda chance aos negros que ficaram em casa quando as escolas da cidade fecharam, concedendo bolsas para quem quisesse voltar a estudar. "Alguns aproveitaram a oportunidade, mas muitos estavam velhos demais para isso", disse a secretária Rita Moseley, de 61 anos. Ela concluiu há duas semanas um curso de administração de empresas com ajuda do programa.

A cidade até hoje tem dificuldades para se reconciliar com o passado. Os líderes segregacionistas que decidiram fechar as escolas do lugar em 1959 morreram sem nunca ter pedido desculpas a ninguém. Muita gente acha que isso não teria mais nenhum sentido. "O mais importante é evitar a repetição de erros como os que foram cometidos aqui", disse Harwood.

Na semana passada, um grupo de 21 moradores de Farmville se reuniu numa sala da principal faculdade da cidade para debater o assunto. Dez eram negros. Alguns acham que deveria ser exigido da cidade um pedido formal de desculpas e algum tipo de reparação para os negros. Mas ninguém sabe exatamente como isso poderia ser feito, e a única conclusão ao fim do encontro era que o grupo voltará a se reunir nos próximos meses.

Um dos negros que participou da reunião, o funcionário público aposentado Frank Early, de 65 anos, disse que não espera mais nenhum tipo de reparação. "Só quero entender melhor o que aconteceu", explicou. Ele vai votar em Obama em novembro e acha que o senador pode ajudar a aliviar as tensões que as questões raciais ainda criam nos EUA. "Ele será o presidente de todos os americanos, e não apenas de uma raça", afirmou Early.