Título: O STF e a tributação em bases universais
Autor: Andrade , André Martins
Fonte: Valor Econômico, 21/05/2008, Legislação & Tributos, p. E2

Até 1995 o Brasil tributava a renda das pessoas jurídicas com base no critério da territorialidade. Implica dizer que os resultados obtidos no exterior pelas pessoas jurídicas brasileiras não eram submetidos à tributação pelo Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) e pela Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) no país.

A conseqüência lógica da territorialidade foi a de que o deslocamento de parte do lucro para jurisdições privilegiadas constituiu, durante um longo tempo, uma prática usual no planejamento das sociedades brasileiras com algum grau de internacionalização. Entenda-se por jurisdições privilegiadas aquelas cujo nível de tributação é igual ou próximo de zero. Alcançava-se, deste modo, uma situação de "non taxation" da parcela dos lucros transferida para o exterior.

Com o advento da Lei nº 9.249, de 1995, o legislador ordinário ampliou, para fins de imposto de renda, a base de tributação das pessoas jurídicas e passou a alcançar os lucros auferidos no exterior por sociedades brasileiras, direta ou indiretamente, por meio de filiais, sucursais, coligadas ou controladas. Migrou, portanto, do critério da territorialidade para o da tributação em bases universais ("worldwide taxation").

Boa parte dos contribuintes brasileiros, cerceados em sua prática anterior de transferir parte dos lucros para sociedades constituídas em paraísos fiscais, visto que tais sociedades seriam agora tributadas no Brasil, passaram a pleitear o diferimento da tributação para o momento da realização financeira dos lucros auferidos no exterior, mediante a distribuição de dividendos pela subsidiária estrangeira.

O legislador aquiesceu e, por meio da Lei nº 9.532, de 1997, diferiu a tributação dos lucros no exterior para o momento de sua distribuição ao controlador ou coligada no Brasil. Posteriormente, voltou atrás, restaurando o sistema de cobrança do imposto quando da mera apuração do resultado, conforme o artigo 74 da Medida Provisória nº 2.158-35, ao mesmo tempo que o submetia também à incidência da CSLL, conforme o artigo 21 da mesma medida provisória. Consagrou-se, portanto, um regime de anti-diferimento absoluto na legislação brasileira, como, de resto, é a regra que sempre vigeu para os lucros apurados localmente.

Acontece que, no resto do mundo, a regra que prevalece, em relação aos resultados apurados no exterior, é a do diferimento, constituindo o anti-diferimento um conjunto de disposições que visam coibir a elisão fiscal, conhecidas como "CFC legislation" (legislação sobre controladas). É que muitas empresas passaram a adiar o repatriamento de lucros indefinidamente, subtraindo-se, assim, à incidência tributária no país-sede do investimento. Não é assim no Brasil. Entre nós, o anti-diferimento é a regra e não a exceção, razão pela qual não constitui a legislação brasileira uma "CFC legislation" no sentido técnico-jurídico do termo.

-------------------------------------------------------------------------------- É indispensável que o STF se manifeste sobre a natureza da tributação como de incidência sobre lucros e não dividendos --------------------------------------------------------------------------------

Todavia, pela identidade do efeito (anti-diferimento da tributação do lucro apurado no exterior) disseminou-se entre boa parte dos contribuintes e até mesmo dos estudiosos da matéria a idéia de que o regime brasileiro é de "CFC legislation".

Ora, raciocinou o fisco, se é CFC a legislação brasileira, ela se sobrepõe aos tratados celebrados para evitar a dupla tributação, em consonância com os comentários anexos ao tratado-modelo da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Com isto, passou o fisco a submeter ao tributo brasileiro os lucros produzidos em sociedades localizadas em países signatários dos tratados, a despeito de vedação expressa neles contida - no artigo 7º do tratado-modelo -, até porque o que se está tributando, sob a ótica CFC, é um dividendo presumido e o dividendo pode ser tributado por ambos os países signatários - artigo 10 do tratado-modelo.

Quanto aos contribuintes, entenderam que a regra genérica do anti-diferimento, implicando na tributação de um dividendo presumido, ofenderia precedente do pleno do Supremo Tribunal Federal (STF) dado no Recurso Extraordinário nº 172.058, tendo a Confederação Nacional da Indústria (CNI) ajuizado uma ação competente para declarar inconstitucional o artigo 74 da Medida Provisória nº 2.158-35, pleiteando o retorno ao regime da Lei nº 9.532 - a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) nº 2.588.

Todo este quadro conduz à seguinte situação: dado provimento à Adin nº 2.588, a incidência tributária dar-se-á somente quando da distribuição efetiva dos resultados. É preciso que se reconheça, entretanto, que tal incidência é sobre lucros, e não sobre dividendos. É que a distribuição constitui um mero aspecto temporal da hipótese de incidência, cujo aspecto material é o auferimento de lucros. Sob pena de incorrer-se em nova inconstitucionalidade por violação à regra da não-discriminação contida nos tratados e ao princípio constitucional da isonomia, tendo em vista a eliminação, pelo legislador pátrio, da tributação sobre dividendos no caso de investimento local, conforme o artigo 10 da Lei nº 9.249.

Na hipótese inversa, de negar-se provimento à Adin, é indispensável que o Supremo se manifeste sobre a natureza da tributação em bases universais como sendo de incidência sobre lucros e não sobre dividendos, de modo que o fisco se abstenha de autuar sociedades localizadas em países com os quais o Brasil tenha firmado acordo para evitar a dupla tributação, sob pena de o referido acordo ser, ele próprio, causa da dupla tributação, como, de resto, já vem ocorrendo em diversas autuações lavradas pelos órgãos fiscalizadores.

André Martins de Andrade é advogado, fundador e sócio titular do escritório Andrade Advogados Associados, mestre em direito comercial pela Universidade de São Paulo (USP) e doutor em direito público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

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