Título: Conflito em área indígena afeta safra de arroz
Autor: Souza , Marcos de Moura
Fonte: Valor Econômico, 23/05/2008, Brasil, p. A4
De segunda a sexta, de 7h às 22h, os empregados de Tiaraju Faccio, um dos principais produtores de arroz de Roraima, se revezam em três turnos para beneficiar 1.200 fardos do grão/dia. São entre 25 mil e 30 mil fardos por mês, o que equivale a 900 toneladas. Com a demanda por alimentos aquecida, Faccio - que dirige a empresa ao lado do pai, Luiz - calcula que teria mercado garantido no Estado e na Bacia Amazônica, se triplicasse a capacidade de beneficiamento. Mas em vez de aumentar, a empresa pode ser, em breve, forçada a reduzir em 50% a quantidade de arroz que beneficia na usina localizada nos arredores de Boa Vista.
É que duas das quatro fazendas onde a família planta arroz estão na área homologada como Terra Indígena Raposa/Serra do Sol - região que se transformou em uma das mais conflituosas e disputadas da Amazônia. Faccio e outros cinco rizicultores instalados na área aguardam decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a confirmação ou não da homologação.
Se confirmada, os fazendeiros - assim como os últimos pequenos proprietários e comerciantes não-índios - terão de sair. Suas propriedades passarão para o controles dos povos indígenas das etnias Macuxi, Ingarikó, Taurepan e Patamona. São ao todo 19 mil índios, segundo o Conselho Indígena de Roraima (CIR), principal associação indígena do Estado.
O processo de demarcação começou no início dos anos 90. Trata-se de uma área no extremo norte de Roraima, de 1,7 milhão de hectares, ou 11 vezes a área do município de São Paulo. A terra foi homologada pelo governo federal em 2005, e em março deste ano a Polícia Federal iniciou uma operação de retirada dos últimos não-índios da região, entre eles os seis grandes fazendeiros. A operação acabou interrompida por uma liminar e o caso foi para o STF. Tudo isso em meio a ruidosa discussão sobre soberania nacional, intervenção de ONGs estrangeiras, direitos dos índios e interesses de grupos privados. Mas afora essas questões - dramatizadas por manifestações, operações da PF, queixas do Exército e até um ataque a tiros que deixou dez índios feridos - o reconhecimento da terra trará, na avaliação dos críticos do processo, um impacto significativo e imediato para a economia de Roraima.
"Se os fazendeiros saírem da área, vamos ter um déficit considerável de oferta de arroz a ponto de precisarmos comprar arroz de outros Estados", disse ao Valor o governador José de Anchieta Jr. (PSDB). Todo o arroz consumido no Estado vem hoje dos produtores locais. Os rizicultores, segundo o governador, representam 6% do PIB de Roraima (R$ 3,2 bilhões) e geram, direta e indiretamente, 2 mil empregos. Em 2007, o setor teve faturamento de R$ 51 milhões.
Em termos de arrecadação de ICMS, a contribuição do setor é pequena, porque a maior parte do arroz de Roraima (perto de 90%) vai para a Zona Franca de Manaus, o que isenta os produtores do tributo. No ano passado, o Estado arrecadou em ICMS recolhido pelo setor meros R$ 683, 3 mil. A agricultura, dominada pelo arroz, é o terceiro setor mais importante para o PIB estadual. Os gastos da administração pública representam 48%, seguidos à distância pela indústria da construção, com 9%.
Segundo Faccio - filho de descendente de italianos com uma descendente de índios do Amazonas - , a empresa da família vem contendo investimentos nas fazendas Guanabara e Canadá, ambas na terra indígena, por conta do fantasma de uma saída forçada. "Se investíssemos mais, produziríamos muito mais. Mas seria preciso um plano de longo prazo e isso não estamos fazendo."
O maior rizicultor de Roraima, Paulo César Quartiero, diz que, devido ao clima de incerteza e à contenção dos investimentos, os produtores estão perdendo mercado. "Recebemos consulta do governo da Venezuela sobre se poderíamos vender para eles 45 mil toneladas de arroz, o que dá 900 mil sacas. Recusamos, porque desabasteceríamos o mercado local." A produção de 2007/2008 de Quartiero, dono da marca Arroz Acostumado, será de 600 mil sacas. O produto é vendido em Manaus, Santarém e na calha do rio Amazonas, além de Colômbia e Peru.
Ex-prefeito do município de Pacaraima, tem liderado as pressões contra a chamada demarcação contínua da Raposa. Em maio, foi detido após funcionários seus terem aberto fogo contra índios que tentaram invadir uma de suas propriedades. Quartiero foi solto na semana passada. Uma de suas bandeiras - partilhada pelos demais produtores e por críticos da homologação - é que a nova área indígena deixe de fora as fazendas.
"Se a área for homologada, será o fim da possibilidade de Roraima cumprir sua vocação de ser um celeiro da produção de alimentos da Amazônia", diz o fazendeiro. Ao contrário dos outros Estados da Amazônia brasileira, Roraima tem ampla área de savana, semelhante ao cerrado. Além disso, o índice pluviométrico é inferior ao dos vizinhos amazônicos, o que no caso da agricultura na região é uma tremenda vantagem. Os críticos da demarcação contínua dizem que a faixa de terra onde as fazendas estão (4,5% do 1,7 milhão de hectares da Raposa) é a mais propícia para o arroz no Estado. São duas safras por ano, contra safra na maior parte das demais áreas da região.
Transferir fazendeiros para outras terras de Roraima é algo previsto pelo decreto que homologou a Raposa/Serra do Sol e que também Anchieta Jr. promete fazer. A questão é transferir para onde. O governo estadual tem sob sua jurisdição 7,34% do território de Roraima. A maior parte (46,68%) é terra indígena. O restante pertence ao Exército ou são unidades de conservação. "Caso se confirme a demarcação em área contínua, vou acelerar o processo de transferência das terras ainda sob tutela da União para o Estado", diz o governador. São 6 milhões de hectares, ou 25% das terras do Estado hoje com a União. "Só me restará a opção de tentar assentar os arrozeiros nessa área, mas nenhuma outra oferece as condições daquela (Raposa) para o arroz. "
Outra pendenga é o valor da indenização oferecida pelo governo federal aos donos de terra na Raposa/Serra do Sol. Ivo Barili, outro grande produtor de arroz do Estado, diz que peritos contratados por ele avaliaram sua fazenda em R$ 9 milhões e que a indenização oferecida pelo governo seria de pouco mais de R$ 100 mil. Segundo o governador, avaliações apontam que o total de ativos na área da Raposa/Serra do Sol é de cerca de R$ 100 milhões. O valor das indenizações oferecidas pelo governo federal é de R$ 12, 3 milhões.
Embora acredite que o Supremo não vá confirmar a homologação da forma que foi aprovada, Barili já cogita a idéia de passar a cultivar do outro lado da fronteira. "Se tivermos de sair, teremos que pedir socorro para algum país vizinho, a Venezuela ou a Guiana, onde também tem plantio de arroz." Barili é proprietário da marca Tio Ivo e da fazenda Tatu, com 9.600 hectares, também nos limites da Raposa.
Lideranças indígenas já elaboraram um esboço sobre o que fazer com as fazendas na área da Raposa. A idéia, segundo Jaci José de Souza Macuxi, de 60 anos, um dos mais influentes no CIR, é cultivar coletivamente algodão, milho, feijão, cana e jerimum. "A nossa proposta é dar continuidade à produção, mas não de arroz, que usa muito agroquímico e acaba com a caça e a pesca." Recursos para investimentos? Macuxi diz que os indígenas já possuem as sementes que tradicionalmente preparam e que, em vez do maquinário, usarão trabalho braçal. Produtores e o governador são céticos. "Produção agrícola não é da cultura deles, o que dirá produção extensiva", diz o governador Anchieta Jr.