Título: Organização regional já nasce marcada por atritos
Autor: Leo , Sergio
Fonte: Valor Econômico, 23/05/2008, Internacional, p. A7

O governo brasileiro realiza hoje uma reunião de cúpula inédita na história do continente, para firmar, em Brasília, um tratado que reúne na mesma organização de cooperação regional presidentes sul-americanos que têm trocado sérias acusações e insultos em público. A União das Nações Sul-Americanas (Unasul), nasce nesta sexta-feira, marcada por atritos regionais, como o conflito entre Colômbia, Venezuela e Equador, por causa dos rumos do combate entre o governo colombiano e a guerrilha das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).

Será um nascimento atribulado: o presidente da Colômbia, Álvaro Uribe, designado para a presidência da organização, rejeitou o posto, alegando não ser "prudente" chefiar a nova organização devido à crise com os governos do Equador e Venezuela, a quem acusa de ajudar às Farc. Também avisou que "não é o momento" de aderir ao Conselho Sul-Americano de Defesa, que o governo brasileiro esperava criar à margem da reunião da Unasul. O aviso levou o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, a classificar Uribe entre os "lacaios indignos, do império estadunidense".

O governo brasileiro articulou, para o posto rejeitado por Uribe, a presidente do Chile, Michelle Bachelet. Mas terá de resolver outro problema: o presidente do Equador, Rafael Correa, chegou ontem a Brasília com a notícia de que o indicado para a secretaria-geral da Unasul, o ex-presidente equatoriano Rodrigo Borja, renunciou ao cargo por "mal-entendidos" e críticas ao texto do tratado. Correa avisou, antes de partir de Quito (onde ficará a secretaria-geral da nova organização) que quer rediscutir o estatuto negociado pelos diplomatas, por considerá-lo coisa de burocratas.

Um estatuto que deixa "praticamente" sem poderes os conselhos de Presidentes, de chanceleres e de altos funcionário é "uma loucura", criticou Correa em entrevista à imprensa local, antes de deixar o Equador. O Brasil defende o estatuto, a ser aprovado hoje com um "plano de ação" para a Unasul, com o argumento de que prevê reuniões anuais de presidentes e semestrais de ministros, capazes de "institucionalizar" a cooperação entre os países. "O mais importante nisso é o fato de ter um tratado; será uma organização de todos os países, não só uma declaração de presidentes", argumentou o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, um dos principais organizadores do acordo, ainda antes de ser informado das restrições de Correa. O tratado prevê até a criação futura de um parlamento sul-americano.

O governo brasileiro se espelha no lento e também acidentado processo de constituição da União Européia, que Lula tem ambição de replicar no continente, no ritmo possível, pelas diferenças políticas e econômicas entre os países da região. Para os diplomatas que assessoram Amorim, a Unasul será uma maneira de aproximar as altas cúpulas dos países do Mercosul e os da Região Andina, além de Suriname e Guiana, para projetos comuns e pragmáticos em energia, integração física e cooperação econômica e social.

"O objetivo dessa reunião, uma reunião extraordinária, é o de aprovar o tratado; certamente haverá decisões sobre outros temas", comentou Amorim, na quarta-feira, reconhecendo que poderá haver "superposição" com outros organismos regionais no continente, mas que, "seguramente" vê na Unasul um "espaço" para superar os conflitos entre os países da região.

Os conflitos serão assunto de uma reunião bilateral entre Lula e Uribe, o único presidente, até ontem, a solicitar um encontro privado com o brasileiro. Uribe deve conversar com Lula a respeito dos dados contidos nos computadores apreendidos no ataque do Exército colombiano, em território do Equador, a um acampamento das Farc. O governo colombiano ainda não fez acusações formais, mas tem vazado informações de que os dados comprometem seriamente Chávez e Correa com as operações da guerrilha, o que é rechaçado pelos dois presidentes.

Embora a relação entre Lula e Uribe seja muito boa, o colombiano deu um duro golpe na diplomacia brasileira ao recusar o Conselho de Defesa regional, especialmente com o argumento de que já existe a Organização dos Estados Americanos (OEA) - que tem a participação ativa dos Estados Unidos. Amorim, até a quarta-feira, dizia confiar que não havia oposição à assinatura de um acordo prevendo a criação do Conselho de Defesa.

Nesse clima, há expectativas também em relação às reuniões paralelas à cúpula de chefes de Estado. Correa deve anunciar se adere ou não à Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), iniciativa de Hugo Chávez, à qual pertencem também Cuba, Bolívia, Haiti, República Dominicana e, como observador, o Irã. Chávez chegou a Brasília trazendo o presidente da Bolívia, Evo Morales, que, antes, foi à Cuba, conversar com o ex-presidente Fidel Castro.

O governo Morales promete responder, após a reunião da Unasul, a uma queixa do presidente do Peru, Alan García, por causa de um outro Chávez, o jornalista Walter Chávez, a quem os peruanos acusam de ter relação com a guerrilha peruana do Movimento Revolucionário Tupac Amaru (MRTA). O jornalista foi assessor e chefe de campanha eleitoral de Morales. O presidente boliviano acusou o governo Alan García de aliar-se à CIA para forçar a extradição de Walter Chávez - o qual nega relações com a guerrilha. García fez uma queixa formal exigindo explicações da Bolívia, que protege Chávez com status de refugiado político.