Título: Você já tem um carro?
Autor: Guilherme Nastari
Fonte: Valor Econômico, 23/05/2008, Opinião, p. A8

Nos últimos meses houve crescimento expressivo em alguns setores da economia brasileira. Impulsionados pela boa situação internacional e também por políticas econômicas mais estáveis, algumas conquistas, tais como o grau de investimento, foram alcançadas.

Com crescimento exuberante, a indústria automobilística brasileira passa a se posicionar como uma das mais importantes no ranking mundial. Foi observado nos quatro primeiros meses de 2008 um crescimento relativo médio de licenciamento de veículos leves superior a 35%. Só em abril deste ano, foram licenciados 247.926 autoveículos leves, o que representa incremento de 45,8% sobre o mesmo mês do ano anterior. Em 2008, o Brasil se aproxima da França, que desfruta da posição de sétimo país no ranking mundial de licenciamento, e sexto no ranking de produção.

O volume de vendas de autoveículos mudou completamente de patamar. Na década de 80, quando houve um expressivo aumento da frota a álcool, culminando com a crise de abastecimento de 1989, as vendas mensais não ultrapassavam 60 mil veículos. Em 2002, a venda média mensal foi de 117 mil veículos.

Em abril de 2008, atingimos um patamar quatro vezes daquele registrado na década de 80.

Existem algumas frentes que explicam e podem justificar o desempenho extraordinário nos níveis de licenciamento. O impacto do aumento e da facilidade de crédito, certamente, foi o maior combustível para que a indústria se veja diante desta demanda sem precedentes por veículos leves.

O reflexo de políticas econômicas mais estáveis e um cenário internacional menos volátil possibilitaram a diminuição do risco de crédito. O setor financeiro do país passou a disponibilizar novos patamares e formas de financiamento, que há muito tempo não eram observados nem praticados internamente. Passamos a usufruir privilégios que antes eram observados e disponibilizados somente em países desenvolvidos, como os Estados Unidos e Mercado Comum Europeu. Financiamento total, baixas taxas e longos períodos de amortização passaram a ser comuns e facilmente encontrados na praça.

Porém, outro fator pouco discutido é o aumento da participação do combustível renovável utilizado na matriz brasileira de combustíveis líquidos. A disponibilidade de etanol combustível em volume suficiente e a preços baixos tem contribuído para aumentar a renda pessoal disponível das unidades familiares. Em outras palavras, o consumidor brasileiro está ampliando seu poder de compra quando passa a utilizar o etanol como fonte de energia líquida.

O ganho gerado pela utilização de etanol está indiretamente financiando uma parte relevante das prestações dos financiamentos para a aquisição de veículos. Naqueles de menor valor na hora da compra, este impacto favorável se faz sentir ainda mais.

-------------------------------------------------------------------------------- Nos anos 80, as vendas mensais não chegavam a 60 mil veículos; já em abril de 2008, foram quatro vezes maiores --------------------------------------------------------------------------------

Um tanque de gasolina de 50 litros custa, em média, na cidade de São Paulo, R$ 120,00. O equivalente em quilômetros para o etanol custa R$ 87,50. O ganho efetivo na utilização do etanol, no lugar da gasolina, é em média de R$ 130,00 por mês.

Para alguns consumidores o ganho é ainda maior, pois mensuram esta vantagem pela diferença direta de valor entre o abastecimento de um tanque de álcool ou de gasolina, sem levar em conta o menor poder calorífico do álcool. Por esta conta, o incremento de renda percebido é de R$ 260,00 mensais.

O impacto destes ganhos de valor nas classes sociais de nível de renda mais baixa viabiliza a aquisição de um grande número de veículos que, historicamente, não estavam sendo comercializados. Classes C e D passaram a contar com a oportunidade real de possuir veículos leves como as classes mais capitalizadas.

Alguns produtos que antigamente eram consumidos exclusivamente por grupos sociais mais privilegiados passam a ser de consumo comum. O incremento observado no poder de compra de classes de renda mais baixa poderá afetar as relações de oferta e demanda de alguns setores.

Estas situações geram oportunidades de mercado e aumentam a competitividade entre as empresas, potencializando ainda mais o poder de compra dos consumidores.

Comprar uma televisão ou um carro está ficando cada vez mais parecido. A principal diferença é que no mercado de eletrodomésticos o consumidor não possui o auxílio gerado pelo etanol no processo de financiamento. Respeitadas as proporções, comprar um carro está ficando tão atrativo quanto comprar uma televisão de tela plana. E isso sem contar que mais de 87% das vendas de veículos ocorrem na modalidade flex, o que traz ao consumidor a oportunidade de escolha do combustível no ato do consumo, pela comparação de preços. Isto trouxe uma maior resposta da quantidade demandada a variações de preço (maior elasticidade-preço da demanda) e afastou de vez o risco de um novo desabastecimento.

Entretanto, o aumento na demanda por veículos não está sendo acompanhado, no mesmo ritmo, por investimentos em infra-estrutura. O impacto será observado na possibilidade de aquisição de veículos no futuro. O desafio do governo é gerar recursos suficientes para realizar os investimentos necessários - daí o PAC - ou criar condições regulatórias que viabilizem e estimulem o investimento alternativo privado. O Brasil se encontra na situação de quem atingiu um objetivo longamente almejado, mas agora precisa trabalhar duro para que os louros desta vitória não se transformem em desilusão, por falta de condições para usufrui-la.

Políticas contracionistas, como pedágios urbanos e rodízios de placas, certamente irão estancar a tão almejada capacidade de aquisição de veículos do consumidor brasileiro.

Guilherme Nastari é analista econômico da DATAGRO.