Título: A extemporânea Unasul já nasce com divisões
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 27/05/2008, Opinião, p. A14

A União das Nações Sul-Americanas nasce com o Mercosul politicamente estagnado e a Comunidade Andina em frangalhos, quase às voltas com uma guerra entre vizinhos. Nestas condições, é bastante claro que se trata de uma iniciativa em que a vontade suplanta a realidade e que estará condenada ao marasmo. Há inegáveis vantagens em buscar uma integração política e econômica do continente, desde que ela não seja fruto de artificialismos como os que deram origem à Unasul.

Politicamente, a América do Sul vive momentos de razoável instabilidade, patrocinada por governos democraticamente eleitos que tentam escapar dos mecanismos democráticos de controle e decisão, como os de Hugo Chávez, na Venezuela, Evo Morales, na Bolívia e Rafael Correa, no Equador ou até mesmo o de Álvaro Uribe, empenhado em uma terceira reeleição, quando a Constituição de seu país não permite sequer uma. A belicosidade entre os "bolivarianos" Chávez e Correa para com o colombiano Uribe levou os dois países à beira de um conflito armado há pouco. Tão grave quanto a iminência de uma guerra foram as revelações obtidas por meio da apreensão do computador de Raúl Reyes, um dos líderes das Forças Armadas Revolucionárias Colombianas mortos durante uma incursão de tropas em território venezuelano. Sua autenticidade foi comprovada pela Interpol - o que não indica que os fatos ali apontados sejam verdadeiros. Eles indicam que o governo venezuelano teria financiado compra de armas para as Farc e sugerem relacionamento constante de membros do governo de Chávez e de Correa com a guerrilha colombiana.

As Farc são um divisor de águas político na região, que precisa ser ultrapassado para que qualquer idéia de integração possa prosperar. Uribe exigiu, para se comprometer com a criação de um Conselho de Defesa da região, que a guerrilha fosse considerada um grupo terrorista, definição que é claramente rejeitada pelos chavistas e da qual o governo brasileiro foge sempre que pode. O próprio Conselho de Defesa, adiado, é um delírio burocrático ou coisa pior. Não há inimigo externo a combater, enquanto que a ameaça maior é de um choque entre países vizinhos com objetivos territoriais e políticos incompatíveis. O combate à força desestabilizadora do narcotráfico teria de ser um objetivo comum dos governos. Não é.

Em termos econômicos, as perspectivas de integração estão igualmente longínquas. A adesão de Chávez ao Mercosul foi feita às pressas, enfrenta oposição e ainda não se consumou. Uma vez consumada, tem tudo para acirrar ainda mais as divergências que paralisam o bloco quase que desde sua criação. Há contestação do Mercosul por parte dos sócios menores, como o Uruguai de Tabaré Vázquez, que agora ganhará maior dinamismo com a eleição de Fernando Lugo no Paraguai. Há atritos entre os dois sócios maiores, como Argentina e Brasil. E há atritos entre sócios maiores e menores, como o da Argentina com o Uruguai na questão da operação de papeleiras na fronteira com a Argentina - e as tentativas seguidas do governo uruguaio de se bandear para o lado dos Estados Unidos, com os quais assinaram um acordo de investimentos.

Buscar integrar os países da Comunidade Andina não garantirá mais coesão econômica ao Mercosul - talvez ocorra o contrário. Peru e Colômbia têm acordos de livre comércio com os EUA e o Chile tem uma vasta coleção de acordos comerciais bilaterais. Nenhum desses três países têm entre seus principais interesses amarrar-se ao Mercosul, embora possam com ele nutrir interesses circunstanciais. Onde há interesse comum - a integração energética -, é onde há maior divergência política. A Bolívia nacionalizou petróleo e gás, Correa e Chávez têm estes setores sob controle e a Argentina, que precisa desesperadamente de energia, tenta obtê-la às custas do fornecimento ao Brasil.

A solidificação de laços econômicos poderia abrir caminho para uma aproximação política frutífera dos países sul-americanos. Uma das prioridades dos governos deveria ser, em vez de construir instituições de cúpula artificiais, o de promover o fortalecimento dos blocos regionais de comércio. Por meio deles, pode-se avançar na consolidação gradual de instituições políticas que, mais adiante, propiciariam a integração de fato. A criação extemporânea da Unasul não é o caminho para isso.