Título: Riscos de banalização
Autor: Neri, Màrcia
Fonte: Correio Braziliense, 21/02/2011, Saúde, p. 19

Ao longo dos últimos 30 anos, o Brasil deixou para trás índices históricos de desnutrição para ocupar lugar de destaque no ranking mundial da obesidade, cuja incidência dobrou em todo o planeta nesse mesmo período. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que o sobrepeso já atinge 50% da população maior de 20 anos ¿ aproximadamente 65 milhões de pessoas. Como reflexo dessa epidemia, o número de cirurgias bariátricas realizadas em hospitais vinculados ao Sistema Único de Saúde aumentou quase 800% entre 2001 e 2010. Em unidades particulares, o crescimento registrado na última década é menor, cerca de 300%. O número absoluto de procedimentos, entretanto, supera em 13 vezes o do SUS, deixando o país, com 64,4 mil cirurgias realizadas no ano passado, atrás apenas dos Estados Unidos, onde 300 mil intervenções são feitas anualmente.

A redução de estômago como medida para se perder peso é indicada quando o índice de massa corpórea (IMC) é maior que 40kg/m². Cada caso demanda a avaliação de uma equipe multidisciplinar. Mas, em geral, a intervenção é considerada no meio médico como uma medida extrema, usada somente quando todas as alternativas de emagrecimento foram esgotadas. Para o presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM), Ricardo Cohen, ainda que o aumento de cirurgias no Brasil impressione, o montante realizado é mínimo perto da quantidade absurda de obesos que necessitam da intervenção. Ele explica que a videolaparoscopia trouxe avanços importantes, por ser menos invasiva e garantir o mesmo resultado que os procedimentos abertos. O tempo de internação é menor e o pós-operatório, menos dolorido.

A cirurgia bariátrica pode ser indicada quando o indivíduo tem IMC inferior a 40kg/m², mas apresenta comorbidades, como diabetes, hipertensão arterial, apneia do sono ou hérnia de disco. Segundo o médico, a fisiologia do obeso mórbido difere da do não obeso. ¿Cerca de 95% deles não conseguem perder ou manter a redução de peso a longo prazo com dieta, exercícios e medicamentos. A cirurgia devolve a esse paciente a capacidade de sentir saciedade e de controlar o peso por mais tempo¿, defende. Os perigos desse tipo de intervenção, no entanto, sempre foram muito discutidos no passado, quando o índice de mortalidade ultrapassava os 5%. ¿Evoluímos muito em relação à segurança. Hoje, as mortes decorrentes de complicações com o procedimento não passam de 0,23%¿, garante o especialista.

Menos riscos O cirurgião do aparelho digestório Ronaldo Coenca observa que, há 11 anos, quando sua equipe começou a operar em Brasília, uma cirurgia bariátrica durava seis horas. As primeiras 48h do pós-operatório demandavam cuidados em unidades de tratamento intensivo e o paciente ficava no hospital por, pelo menos, cinco dias. Hoje, ela é feita em duas horas e o tempo de internação é de dois dias. Coenca enfatiza que, por segurança, o procedimento deve ser decidido por uma equipe multidisciplinar composta por endocrinologista, cirurgião, cardiologista, pneumologista, psicólogo e professor de educação física. ¿A decisão de operar depende da chancela desse grupo. Essa prática contribuiu para a redução da mortalidade. O acompanhamento da equipe reduz as chances de o operado voltar a engordar¿, diz.

A analista de sistemas Luciane Lucena, 37 anos, não teve esse acompanhamento quando foi operada, há cinco anos. Ao longo da vida, as dietas não conseguiram impedir que ela chegasse aos 110kg e desenvolvesse um pré-diabetes. O corpo sofreu os efeitos. Luciane sentia falta de ar e o joelho não aguentou o excesso de peso. A cirurgia foi bem-sucedida, mas a analista passou a sofrer de bulimia e anorexia. ¿Não tive problemas com o procedimento em si, mas passei a não comer, com medo de engordar. Quando comia, provocava vômitos. Só consegui superar esse distúrbio com a ajuda de um psicólogo¿, diz. Os exercícios, a dieta balanceada e o equilíbrio emocional sedimentaram uma conquista: os 58kg, distribuídos em 1,68m.

A nutricionista Patrícia Silva, gestora do programa Peso Saudável, da Amil, confirma as observações de Luciane e acrescenta que o acompanhamento multiprofissional pode, inclusive, evitar o procedimento cirúrgico. Segundo ela, os cuidados pré-cirúrgicos impedem que a intervenção bariátrica seja banalizada. ¿Por ser pouco invasiva, a videolaparoscopia traz a ilusão de simplicidade. A preparação conscientiza o paciente e influencia diretamente no sucesso do tratamento¿, avalia. ¿Sem reeducação alimentar acompanhada por mudança de hábitos, ganhar peso novamente é uma certeza e a cirurgia é em vão.¿

O consultor de TI e músico Bernardo Rosa, 29 anos, teve a indicação da cirurgia bariátrica em 2009, mas, depois de iniciar o pré-operatório, foi aconselhado a adiar o procedimento. Com 150kg, ele apresentava hipertensão, gordura no fígado, gastrite e problemas no esôfago. ¿Fui fazer o teste de esforço e o cardiologista precisou interromper o exame porque minha pressão chegou a 22/18. Se operasse naquela época, os riscos seriam potencializados¿, avalia.

Nos últimos dois anos, Bernardo mudou a alimentação, parou de fumar e diminuiu em 80% o consumo de álcool. ¿Somos sujeitos ativos do pré-operatório e do tratamento. Contei com o apoio de uma fonoaudióloga, que me ensinou a mastigar. Acabei de fazer uma bateria de exames e fui liberado pela equipe. A operação deverá ser feita no fim deste mês. Estou pronto para a mudança¿, comemora.

Salto gigantesco Em 2001, foram realizadas apenas 497 cirurgias bariátricas pelo SUS. No ano passado, o número saltou para 4,4 mil. Em unidades particulares, houve 60 mil intervenções dessa natureza em 2010, 35% por via videolaparoscópica. Cálculo simples

O índice de massa corpórea (IMC) é um método utilizado para calcular se o indivíduo está com o peso ideal. Segundo a Organização Mundial de Saúde, um IMC de 30kg/m² significa obesidade e um índice acima disso é considerado obesidade severa. Para fazer o cálculo do IMC, basta dividir seu peso em quilogramas pela altura ao quadrado (em metros).

IMC < que 18,5kg/m² ¿ abaixo do peso ideal

IMC entre 18,5 e 25 ¿ peso ideal

IMC entre 25 e 30 ¿ acima do peso ideal

IMC acima de 30 ¿ obeso

IMC > que 40 ¿ obesidade mórbida