Título: Na ponta do lápis, o que importa é a expansão fiscal
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Fonte: Valor Econômico, 02/06/2008, Opinião, p. A14

Fato inédito na história das contas públicas brasileiras, a União, os Estados e Municípios gastaram menos do que arrecadaram nos primeiros quatro meses do ano, já incluída nessa conta a despesa com os juros da dívida. Tecnicamente, o setor público gerou no período um superávit nominal equivalente a 0,76% do Produto Interno Bruto (PIB). Segundo o Banco Central (BC), isso nunca tinha acontecido desde que a série começou a ser apurada, em 1991.

Entre janeiro e abril, os três entes da federação economizaram R$ 61,643 bilhões e gastaram, com o pagamento de juros da dívida pública, R$ 54,858 bilhões. Geralmente, a economia feita - o superávit primário das contas públicas, ou seja, excluídos os gastos com juros - não cobre o serviço da dívida e, por isso, o setor público produz déficits.

Ao produzir um superávit nominal, o Estado brasileiro não pode ser acusado de ter uma política fiscal expansionista e, assim, de contribuir para o aquecimento da demanda agregada e, por consequência, para o aumento da inflação. Mesmo críticos da política fiscal do governo federal reconhecem isso. "De fato, com base nos dados referentes ao primeiro quadrimestre, não é possível afirmar que o governo fez uma política fiscal expansionista", atestou, em entrevista ao Valor, o economista-chefe do banco Santander, Alexandre Schwartsman.

Não se pode esperar, no entanto, que o superávit nominal vá ser mantido até o fim do ano. A tendência é que, nos próximos meses, os números convirjam novamente para uma situação deficitária, verificada no fluxo anual das contas públicas - nos 12 meses encerrados em abril, o déficit acumulado foi de 1,90% do PIB (cerca de R$ 50,6 bilhões).

Quando contingenciou o orçamento, em março, o governo federal anteviu que a União terminará o ano com um superávit primário de 1,7% do PIB. Nos 12 meses concluídos em abril, registrou superávit de 2,81% do PIB. Conseqüentemente, está claro que, até o fim do ano, segundo previsão oficial, as contas do governo central vão se deteriorar, contribuindo com cerca de 1% do PIB para o aumento da demanda agregada.

O governo alega que, na verdade, a deterioração será menor, uma vez que, da meta total de superávit primário do setor público para 2008 - de 3,8% do PIB -, pode ser descontado até 0,45% do PIB, a título do Projeto Piloto de Investimento (PPI). Na prática, o PPI, que chegou a ser negociado com o Fundo Monetário Internacional quando o país estava sob seu monitoramento, foi uma forma encontrada pelas autoridades brasileiras de não contabilizar investimentos como gasto corrente.

No mundo real, aquele para o qual o Banco Central olha quando calibra a taxa de juros, não importa se o conceito de superávit é A ou B. Os investimentos públicos e privados, embora sejam meritórios e necessários porque diminuem os gargalos da economia e ampliam a sua capacidade produtiva, aumentam a demanda agregada num primeiro momento. No cenário básico de projeção da inflação para 2008 e 2009, o BC trabalha com a hipótese de que haverá expansão fiscal entre 0,43% e 0,88% do PIB até o fim do ano, dependendo do que for gasto com PPI. É isso o que realmente importa.

O Ministério da Fazenda percebeu que apenas elevando o superávit primário o governo ajudará o BC a aliviar o aperto monetário em curso. Como não consegue convencer o presidente Lula a aumentar o esforço fiscal, o ministro Guido Mantega tem tentado persuadi-lo a criar um fundo soberano e constitui-lo com excedentes de arrecadação. Na prática, o fundo funcionaria como um mecanismo anti-cíclico de estabilização, postergando para um segundo momento outras de suas atribuições, como o financiamento de empresas brasileiras no exterior.

A situação é curiosa. Em tese, o Brasil não reúne os requisitos básicos para ter um fundo soberano, mas o ministro da Fazenda viu no mecanismo uma forma de aumentar o superávit primário no curto prazo. O problema é que Lula, inebriado pelos elevados índices de popularidade e interessado em ganhar as eleições de 2008 para fortalecer sua coalizão política pra 2010, tem rejeitado toda e qualquer proposta de redução de gastos.