Título: "Foi minha maior derrota desde a prisão"
Autor: Cristiano Romero
Fonte: Valor Econômico, 18/02/2005, Política, p. A8

Personalismo, infidelidade partidária, dificuldade de relacionamento com os aliados e mesmo com a oposição, ausência de diálogo. Estes foram alguns dos males que, segundo o presidente do PT, José Genoino, levaram o partido do governo a sofrer a sua maior derrota no Congresso - na disputa pela presidência da Câmara dos Deputados. Nesta entrevista ao Valor, Genoino disse que, ao lançar Luiz Eduardo Greenhalgh, o PT procurou fazer uma "sinalização à esquerda" para retomar a coesão da bancada e animar a militância, uma vez que o partido e o governo passaram 2003 e 2004 perdendo apoio de sua base social. Ele acha que PSDB e PFL perceberam isso e atuaram de maneira decisiva para derrotar o PT e o governo, pensando na sucessão de 2006. Genoino revelou que o PT vai rever seu programa, fazendo, inclusive, a atualização do pensamento econômico, e criar um bloco político de esquerda, "informal", com os partidos que com ele se identificam. Disse que as prioridades neste ano são a reforma política, mudanças no orçamento e no sistema de tramitação das MPs Valor: Como o sr. qualifica o fracasso do PT na disputa da Câmara? José Genoino: Foi uma derrota doída. Teve um sabor amargo. A maior derrota que vivi desde a minha prisão, em 1972 (na guerrilha do Araguaia). Assumo a responsabilidade dos meus erros, mas quando entrei no assunto já havia um incêndio. Eram sete os candidatos. Valor: Qual foi o fator preponderante da derrota? Genoino: O mais profundo, que é algo que precisamos resolver na reforma política, é essa visão de que o mandato parlamentar virou uma instituição, em detrimento dos partidos. O sistema político-eleitoral no Brasil bateu no teto. Esgotou-se. Essa pulverização expressa nas mesas diretoras do Legislativo aconteceu em vários lugares. O fato mais grave foi aqui, mas ocorreu em São Paulo, Salvador, Goiânia. Outro problema é a relação dos aliados com o PT. Ela é de conflito, de desconfiança. É uma relação que busca sempre enfraquecer o PT. É por isso que concordo com o presidente Lula, quando ele disse que a derrota é do PT, não do governo. Para alguns aliados, a distância em relação ao PT é muito grande. Valor: Em que setores? Genoino: Os ruralistas, os partidos mais ao centro. O histórico desses setores com o PT é de contenciosos. É sempre uma relação atritada. A candidatura Greenhalgh era uma sinalização à esquerda. Pela história dele, por seus compromissos públicos e democráticos, talvez, fosse uma sinalização muito avançada. Pesaram também os métodos de relacionamento do PT no Congresso. Valor: O que será feito para mudar isso? Genoino: Temos que criar uma espécie de bloco político, informal, com os partidos com os quais temos mais afinidade. Chegaríamos a 150 deputados para ter uma relação, com os demais, numa posição mais forte para negociar. Valor: Que partidos entrariam nesse bloco? Genoino: PT, PSB, PC do B. Valor: Isso não vai esgarçar ainda mais a relação com os outros partidos aliados? Genoino: Não. O PT, não o governo, deve fazer o bloco. Também temos que superar os atritos, a desconfiança, com a base aliada ao centro. Valor: O sr. se refere ao PL? Genoino: O PL, justiça seja feita, foi o mais fiel na disputa da Câmara. Valor: Quais foram os infiéis? Genoino: PP, PTB e PMDB. Mas, entendemos as razões que eles colocaram. Valor: Eles reclamaram que Greenhalgh não era um candidato natural. Genoino: Não é isso. Na verdade, não tínhamos um candidato natural. Qualquer candidato do PT teria que ser construído. Quando escolhemos o Greenhalgh de forma consensual, era justamente para construir uma candidatura.

Vi os deputados falando 'O Greenhalgh vai fazer limpeza na Casa, vai se aliar ao Ministério Público'. Eles tinham ojeriza"

Valor: Virgílio não era um candidato natural? Genoino: Não. O candidato natural era o que unisse a bancada e a Câmara, e que tivesse, para o PT, uma sinalização à esquerda. O Virgílio não unia a bancada. Ele começou um movimento errado, sem conteúdo, ao colocar Minas Gerais contra São Paulo. Valor: Por que, então, a construção de Greenhalgh não deu certo? Genoino: O que nos atrapalhou foi a dissidência de Virgílio, que abriu o flanco para dar vazão a esse sentimento, na Câmara, de quem não queria o perfil do Greenhalgh. Depois que a bancada do PT o escolheu, a mudança do escolhido a partir de uma pressão da base aliada seria muito ruim para o PT. Talvez, o que devêssemos ter feito no começo era ter escolhido os nomes e consultado os aliados. Foi um erro não ter feito isso. Quando, em 1991, o PMDB quis que Ulysses Guimarães fosse o presidente da Câmara, o PFL avisou que se o candidato fosse Ulysses o partido o derrotaria. O PMDB, então, indicou o Ibsen Pinheiro. Mas, insisto que era fundamental para o PT um candidato que sinalizasse para a Câmara e a sociedade um movimento à esquerda. Valor: Por quê? Genoino: Era fundamental um reposicionamento da bancada, que viveu dois anos de muita tensão e dissidência. Com Greenhalgh, queríamos dar coesão à bancada. O PT tem que fazer um diálogo com a sua base social e política com sinalizações. Valor: Em que direção? Genoino: Sabemos das limitações na gestão macroeconômica e, nessa área, não podemos fazer nenhuma aventura. Mas, precisamos fazer sinalizações fortes nas áreas política e social e também nos métodos e gestos do partido. Exemplos: a abertura dos arquivos da ditadura e o gerenciamento dos programas sociais. O PT não pode ser uma legenda de personalidades nem uma fração de tendências. O partido está hoje pressionado por esses fatores. Crescemos e chegamos ao poder e isso fez com que as personalidades crescessem muito no PT. Valor: Quem adotou postura personalista? Genoino: O Virgílio nessa campanha da Câmara. Isso atinge um grau de autonomia que faz o partido virar uma legenda. É um erro. Por outro lado, se não dermos nova coesão à nossa bancada, corremos o risco de virarmos uma federação de tendências, com os grupos com autonomia para votar, se manifestar. Temos que resgatar o projeto histórico do PT. Os recados vieram na campanha eleitoral de 2004. Valor: Que recados foram esses? Genoino: O de que nem podemos deixar de fazer alianças, e onde não fizemos, nas campanhas municipais de 2004, perdemos a eleição, nem podemos ser pragmáticos demais. O pragmatismo tem que ter limites no PT. O partido tem que marcar uma certa diferença em relação ao que o governo faz. O PT tem que fazer um movimento, que é delicado para o partido, que é sustentar o governo, fazer sinalizações à esquerda (sem criar um contencioso na questão macroeconômica) e dialogar com a nossa base social, a militância. O projeto histórico do PT vai além do governo Lula. Esse contexto veio após as eleições de 2004. A eleição da Câmara estava nesse contexto, por isso, não podíamos chegar a essa disputa sem sinalizar novidades. Acho que os ideólogos da oposição perceberam isso, particularmente, o núcleo do PFL e do PSDB porque, na disputa da Câmara, fizemos várias tentativas de acordos institucionais e eles ignoraram. Valor: O que o sr. propôs à oposição? Genoino: Que colocássemos na pauta um compromisso com a reforma política, mudanças na Comissão de Orçamento e a criação de um diálogo institucional. O Roberto Freire (presidente do PPS), por exemplo, topou. Fiz também um movimento de reaproximação com o PDT. Valor: Na sua opinião, por que a oposição não aceitou o acordo? Genoino: Eles sabiam que isso (a virada à esquerda) é um potencial positivo para o PT. A disputa que eu chamo de cultural, política e ideológica, em relação ao PT, é muito mais radical do que em relação ao governo. Ataca-se o PT para atingir o governo. Como se sabe que Lula e PT são a mesma coisa, então, ataca-se o Lula via PT. Vi esse fenômeno na Câmara com os funcionários da Casa. Há entre eles um sentimento anti-PT muito forte. Valor: Isso aconteceu por causa da reforma da previdência? Genoino: Por causa dessa reforma, da questão dos salários. Na disputa na Câmara, eu vi no ar esse sentimento anti-PT por meio dos partidários do Severino e do Virgílio. A burocracia da Casa não queria a vitória do PT. Valor: Por quê? Genoino: Uma Mesa forte, com muita credibilidade, não é bom para a alta burocracia da Câmara. Eu já sentia isso, mas, quando a campanha se acirrou, os funcionários manifestaram ojeriza e hostilidades a mim. Vi deputados falando "o Greenhalgh vai fazer limpeza na Casa, vai se aliar ao Ministério Público". Os deputados que estão sendo processados também temiam. Nesse cenário, veio também a crise dos partidos aliados. A crise do PMDB e, aí, mais uma vez, o Virgílio prestou um desserviço com a aliança com o Garotinho, que surfou na candidatura dele para interferir no PMDB. No dia da eleição, administrávamos o corpo-a-corpo dos votos e trabalhávamos para evitar que o PMDB fizesse a maior bancada porque, se isso acontecesse, o PT perderia a Comissão de Constituição e Justiça. Valor: O que preocupa o sr. daqui em diante?

Virgílio nos atingiu no coração. Ele legitimou a pulverização e gerou um clima de que tudo é permitido"

Genoino: O PT tem que ter três prioridades. A primeira é o consenso em torno da reforma política. A segunda é mudar a maneira de se fazer o orçamento da União. A terceira é discutirmos a limitação, por parte do Poder Executivo, à edição de medidas provisórias. Na reforma política, temos que começar pela fidelidade partidária, com a fixação de prazo de permanência no partido, sob pena de perda do mandato. Temos que discutir a lista e financiamento público de campanhas. Valor: O governo concorda com essa agenda? Genoino: Vamos propor isso, independentemente do governo. Temos que criar uma governabilidade de partidos. Isso exige a mudança do regimento. Sei que o PT tem que reavaliar a sua prática passada, quando apoiamos o instituto da candidatura avulsa. A idéia de que a presidência da Câmara pode ser discutida separada dos demais cargos é um equívoco. Se isso fosse correto, você deveria escolher o presidente e, depois, fazer a proporcionalidade. A deformação é que, se o PT tivesse vencido a eleição, teria só a presidência. O PP ganhou e ainda ficou com dois cargos: a presidência e a vice. Então, deforma-se no comando da Câmara a representação partidária que vem das urnas. Definitivamente, temos que colocar na lei, que está acima do regimento da Câmara, que o número de deputados para efeito de participação na Mesa e nas comissões é o número do que sai das urnas. Valor: O PT não contribuiu para esse quadro quando estimulou a migração de parlamentares dos partidos de oposição para os da base aliada? Genoino: O PT não fez isso. Está com a mesma bancada do início. Valor: Mas ajudou a inchar os partidos aliados. Genoino: É claro que um governo tem que ter maioria e o governo do PT fez essa maioria porque não elegemos uma maioria parlamentar. Pelo sistema de governabilidade do país, os governos acabam entrando numa rotina que gera esse tipo de desconfiança. Não fizemos muito isso, mas como na base há os parlamentares que são sempre governo, isso acontece. Há partidos que procuram fazer isso. O PT foi oposição por 20 anos e nunca fez isso. E, agora, o partido não inchou. Valor: No que diz respeito à fidelidade, a novidade dessa eleição não foi justamente o fato de o PT ter quebrado uma regra do próprio PT? Genoino: O Virgílio nos atingiu no coração. Na medida em que ele lançou uma candidatura dissidente do PT, ele legitimou a pulverização e gerou um clima de que tudo é permitido. Nesse ambiente, o conservadorismo, o corporativismo, o sentimento de vingança, afloraram. A candidatura do Virgílio nos atingiu numa questão central, que é a unidade de ação. Esse foi o grande erro, o grande desserviço do Virgílio para o PT e a democracia. Valor: Ele será punido? Genoino: Esse assunto tem que ser tratado politicamente. Quero esperar a manifestação do partido, ver como a base (a militância) vai reagir. Vamos ver as cartas, os e-mails. A Executiva tem que esperar um pouco. O centro da agenda não deve ser a punição, que não estou descartando, mas a discussão política. Se colocamos a punição no centro, deixaremos de discutir um problema de fundo, que é a concepção de governabilidade institucional com os partidos políticos. E isso vai desaguar na reforma política. Valor: Se Virgílio não é o único tema a ser discutido, o que mais será tratado para depurar a derrota? Genoino: O personalismo e a questão da unidade de ação serão temas fundamentais da eleição direta no PT, em setembro. Eu já disse que quero presidir um partido, não uma legenda que acomode interesses pessoais, legítimos ou não. Além disso, vamos discutir a atualização do programa do partido. Valor: A atualização do programa ocorrerá em que nível? Genoino: São três os temas. O primeiro é o do Estado, para tirar aquela visão "ideologizada" da crítica da oposição. Estamos organizando o Estado fora da órbita do Estado mínimo, mas não estamos no caminho da estatização. O outro é a reforma administrativa. Temos também que fazer a atualização do modelo econômico. Valor: Por quê? Genoino: A esquerda tinha um modelo de economia que não deu certo. O neoliberalismo, após a derrota da esquerda, levou para o caminho da barbárie. O que é ser esquerda hoje? É a luta por igualdade social, por cidadania. Não é a estatização, não é ficar contra a economia de mercado, o lucro. Valor: A nova visão legitimaria o instável apoio do partido à política econômica vigente? Genoino: É. Seria para dar base ao posicionamento do PT quanto aos bons resultados da política econômica. Valor: O sr. mencionou o orçamento. O que o PT pretende mudar? Genoino: As emendas de bancada. Elas são volumosas (em termos de recursos), não têm RG nem CPF. As emendas individuais são problemáticas porque pulverizam os recursos, mas elas são de valores pequenas e têm RG. É mais fácil controlá-las. Antes da CPI do Orçamento, as individuais eram problemáticas porque não tinham limite. O Congresso, então, achou que as emendas de bancada eram o caminho. O problema é que elas viraram trampolim para o orçamento sem transparência porque a emenda é de bancada, mas na verdade é um deputado que está liderando por meio de acordos. O caso de desvio na TRT de São Paulo foi fruto de uma emenda de bancada. Defendo ainda que haja rodízio na Comissão de Orçamento.