Título: Estratégias e desafios do comércio exterior (IV)
Autor: Alexandre de F. Barbosa e Ricardo Mendes
Fonte: Valor Econômico, 18/02/2005, Opinião, p. A16

Durante o ano de 2004, muito se debateu sobre os motivos que levaram ao fracasso das negociações para a formação de uma área de livre comércio entre o Mercosul e a União Européia. Porém, pouco se avançou na tentativa de elucidar a relação entre a rígida posição de ambos os lados nas negociações e os interesses econômicos concretos. Acredita-se que a lógica dessas negociações não dependa apenas da habilidade negociadora dos agentes, que se encontra limitada pela natureza dos fluxos comerciais e de investimentos entre o Brasil/Mercosul e União Européia. Comecemos, então, pelas relações econômicas para chegarmos às negociações propriamente ditas. O sentido dos fluxos comerciais entre o Brasil e a União Européia modificou-se de forma suave após a desvalorização do real, passando de expressivo déficit em 1998 para um pequeno superávit, em 2000. Já no período pós-2001, especialmente depois da nova desvalorização de 2002, os superávits comerciais brasileiros se mostraram ainda mais volumosos.

Se tomarmos como referência o conjunto dos atuais 25 países integrantes da União Européia, percebe-se que a corrente comercial brasileira incrementou-se 28% no biênio 2003-2004, enquanto o superávit brasileiro apresentou salto de quase quatro vezes, alcançando a casa dos US$ 8,2 bilhões em 2004, pouco abaixo do resultado obtido com os EUA, de US$ 8,7 bilhões. O incremento do superávit deveu-se a uma combinação entre elevação substancial das exportações - de 76%, no período 1999/2004 - e estabilização das importações. Estas, que chegaram a representar em 2003 valor 14% inferior ao de 1999, em virtude do reaquecimento da demanda doméstica no ano passado, saltaram para valor 6% superior ao observado no ano da crise do real. Diferentemente dos EUA, o que singulariza nosso comércio com a União Européia é a grande concentração das exportações brasileiras nas commodities agrícolas, minerais e industriais. A esse respeito, vale ressaltar o dinamismo das exportações agropecuárias e de alimentos - especialmente carnes, peixes e crustáceos, frutas, café, cereais, soja e fumo - que, juntos, responderam por superávit de US$ 8,7 bilhões com a UE em 2004. Se considerarmos itens como ferro, aço, alumínio e outros produtos minerais, mais os segmentos de couro e madeira e celulose, chega-se a saldo adicional pouco superior a US$ 5 bilhões ano passado. Além disso, o Brasil possui desempenho razoável nos segmentos de móveis, calçados e vestuário, os quais, juntos, geraram saldo com a UE de US$ 700 milhões em 2004. Nesses casos, apesar da boa inserção do produto brasileiro, existem problemas de escala, além da dificuldade de se competir com os asiáticos. O Brasil destacou-se ainda, no ano passado, por um saldo comercial de US$ 1,2 bilhão nos segmentos de aeronaves, embarcações e estruturas flutuantes. Por outro lado, o país experimentou em 2004 um déficit de US$ 8,5 bilhões, quando se consideram, em conjunto, os segmentos da indústria química, máquinas, indústria eletroeletrônica, aparelhos de fotografia, cadeia automotiva e filamentos e tecidos sintéticos. Ainda que o déficit seja 15% inferior ao verificado em 1998, indicando algum processo de substituição de importações no período, pode-se considerá-lo em grande medida estrutural, estando de alguma maneira dependente das decisões de investimento das empresas multinacionais.

Uma expansão mais consistente das nossas exportações depende de uma solução positiva do acordo Mercosul /UE

Vale enfatizar outra diferença em relação aos EUA. Enquanto o Brasil apresentou superávit de US$ 750 milhões com a potência americana para o conjunto do setor automotivo, em relação aos europeus verificou-se, em 2004, o segundo maior déficit da história do setor com a UE - US$ 774 milhões. Quanto aos investimentos externos, é flagrante a presença de capitais europeus no Brasil, a partir da segunda metade da década de 90. Tomando o conjunto dos nove países da UE com maior presença na economia brasileira, percebe-se que a sua participação saltou de 34% para 47% do estoque de investimento externo direto no país entre 1995 e 2000. Entretanto, a crescente concentração nos setores de serviços, se trouxe para algumas áreas aumento de produtividade, não contribuiu para a consolidação de plataformas de exportação a partir do Brasil ou para o adensamento das cadeias produtivas nacionais. Passemos agora às negociações. Se, por um lado, os setores exportadores de commodities agrícolas têm grande interesse em expandir as vendas de produtos tidos como "sensíveis" pelos europeus - e, portanto, sujeitos a diversos tipos de restrições tarifárias e não-tarifárias, entre eles carnes, açúcar, etanol, cereais, derivados de leite, fumo e frutas - por outro lado, existe um interesse defensivo, ou então um desinteresse, por parte do setor industrial brasileiro nas negociações com o bloco europeu. Ao contrário do que acontece com os produtos agrícolas, a média tarifária da União Européia para bens industriais é bastante baixa e vários produtos exportados pelo Brasil se beneficiam do Sistema Geral de Preferências. Além dos setores deficitários no comércio bilateral com a UE, descritos acima, outros setores temem que o acordo birregional estabeleça regras de origem, antidumping e salvaguardas que compliquem o seu desempenho exportador. Se, para o Brasil, o interesse no acordo entre o Mercosul e a União Européia resume-se à melhoria das condições de acesso a mercados para bens agrícolas, para os europeus interessa que sejam criados regimes favoráveis às suas empresas que operam nos países do Cone Sul. Dessa forma, além de demandarem a eliminação tarifária para os produtos industriais que favoreçam as estratégias de comércio intrafirma, os europeus exigem também que sejam dadas condições especiais para a indústria automotiva e para o setor de serviços, os quais concentram a maior porcentagem de IEDs europeus. Existem, pois, divergências de fundo entre os interesses econômicos dos dois blocos, as quais foram aguçadas pelas diferenças de percepção entre os países de cada bloco acerca das vantagens e desvantagens da "parceria". Como a pauta brasileira está concentrada em segmentos sujeitos a forte protecionismo europeu, uma expansão mais consistente das nossas exportações depende de uma solução positiva do acordo Mercosul /União Européia, além de um conjunto de outros fatores relacionados ao câmbio e à dinâmica do comércio intrafirma. Ainda assim, o ambiente negociador continua bastante nublado. Depende do resultado das negociações no âmbito da OMC, mas também da pressão defensiva dos setores industriais do Brasil e da Argentina, e da capacidade do governo brasileiro, junto com os demais países do Mercosul, de atender, em alguma medida, às demandas de flexibilização de investimento e serviços. Além, obviamente, da disposição européia em fazer mais concessões agrícolas, o que depende do impacto da entrada dos países do Leste Europeu sobre o afã protecionista dos demais países do bloco.