Título: Lembranças de um futuro promissor
Autor: Espírito Santo , Alexandre
Fonte: Valor Econômico, 30/05/2008, Opinião, p. A10

Os EUA atual encostam nos dois processos recessivos anteriores e ultrapassam o que se verificou no pós 11/09

Nos últimos dias, a relativa sensação de alívio que havia tomado conta dos mercados financeiros foi perturbada. A esperança de que o pior da crise havia ficado no retrovisor ganhara adeptos a partir de abril, o que colaborou, por exemplo, para que o índice S&P500 tivesse retornado aos patamares de fevereiro último, depois da rápida visita ao pântano ocorrida em março, quando o indicador atingiu a cotação mínima de 1.257 pontos - uma queda de 20% em relação ao pico de outubro do ano passado. Todavia, após a divulgação da ata da última reunião do Banco Central americano (FED), a sensação de desconforto parece estar de volta e a pergunta que se coloca é: essa melhora dos mercados pode ter sido (ou será) efêmera?

Um aspecto interessante, nunca ausente em momentos de revezes econômicos, é a enorme diferença de timing entre o que os mercados praticam (e refletem) e a reação dos governos e organismos multilaterais. À exceção do FED, que atuou muito rapidamente reduzindo de forma drástica os juros da economia, e de medidas até certo ponto inócuas do governo Bush, os mais importantes organismos multilaterais levaram um tempo considerável para ajustarem suas projeções econômicas e sinalizarem o que agora apregoam. O FMI, por exemplo, há poucos meses ainda tratava o imbróglio das subprimes como uma "crise séria", enquanto alguns analistas, ainda no final de 2007, já antecipavam que o futuro, diferentemente do que se aguardava, não seria promissor. Segundo eles, a recessão americana viria a ser uma realidade azeda e, por causa dela, outros países se ressentiriam igualmente, incluindo os BRICs. A despeito da China e Índia continuarem a crescer, a perda de fôlego da economia ianque afetaria o PIB mundial para pior.

De fato, os enormes e incomparáveis prejuízos que a situação atual impôs a tradicionais bancos não permitem que sejam sancionadas estatísticas modestas sobre a desaceleração global. Antes tarde do que nunca, o FMI indica, agora, que o crescimento mundial, este ano, está fadado a uma figura em torno de 3,5%, contra os 5% do passado recente. O próprio FED sinalizou, em sua ata, que espera um crescimento modestíssimo em 2008. Algumas instituições de renome mostram-se muito pessimistas, já considerando que o cavalo-de-pau que se avizinha decretará o ocaso desse ambiente de prosperidade econômica e baixa inflação. Guardadas as devidas proporções, dizem que viveremos a reconstituição da Grande Depressão.

O ponto mais significativo é, a meu juízo, o tempo que se levará para que os excessos que originaram essa crise sejam corrigidos. A intensidade, como bem alertou Warren Buffet, já sabemos: é profunda. A melhora recente origina-se dessa percepção, de que o purgatório da economia americana seria relativamente pequeno e se concentraria em 2008. Não acredito. Analisemos o gráfico 1, que mostra a confiança do consumidor americano nos últimos 27 anos.

Esse é um dos mais relevantes indicadores de uma economia, especialmente em se tratando de um país onde o consumo das famílias representa mais de dois terços da riqueza nacional. Está umbilicalmente ligado ao efeito riqueza e à inflação. Quando esta está controlada, a política monetária é frouxa, o que empurra para cima a cotação dos ativos, originando muitas vezes as bolhas especulativas e a sensação de riqueza que impulsiona ainda mais o consumo, via farra do crédito. O inverso ocorre em momentos de preços em alta, o que provoca taxas de juros mais elevadas.

Como se pode verificar, o resultado corrente encosta nos dois processos recessivos anteriores (início dos anos 80 e 90) e já ultrapassa o que se verificou no pós 11 de setembro. A violência da queda é bastante similar, o que sugere que o quadro de outrora possa se repetir no presente. Se assim for, a expectativa de ajuste rápido irá se deteriorar e os mercados, dentro em breve, voltarão a se estressar, pois quanto mais duradoura a crise pior para todos.

Outro aspecto relevante na análise é a questão da inflação - agora apelidada de agflação, por ser proveniente (grande parte) do aumento de preço das commodities agrícolas. Como frisei anteriormente, o mundo de inflação baixa não mais existe. A China, que nos últimos anos exportou desinflação, enfrenta, ela própria, preços ao consumidor não vistos na última década, conforme gráfico 2, e vem atuando para domá-la, com política de elevação de compulsórios e juros.

As principais autoridades mundiais mostram-se extremamente preocupadas com a disseminação da carestia ao redor do planeta e pedem providências para que o processo não saia definitivamente do controle, mesmo porque me parece eufemismo dizer que não há uma crise de petróleo. Pelo menos três fatores manterão o preço dos alimentos em alta: 1) descompasso entre demanda crescente de comida e oferta minguante; 2) elevação dos custos da produção, mormente pelo encarecimento dos fertilizantes e transportes (e assim permanecerão com o preço do óleo nas alturas); 3) movimentos especulativos, em função da política monetária frouxa do FED.

Evidentemente que em momentos como o atual as justificativas nem sempre são as mais precisas. Advogar a tese simplista de que os biocombustíveis são os responsáveis pela tal agflação, como está sugerindo o FMI, a União Européia e até mesmo a ONU, é exagero. Se for assim, também seria de bom-tom que se parasse de vender pipoca nos cinemas. O ideal é que o assunto seja tratado de forma mais técnica, mesmo porque a questão central tem a ver com a solução para os enormes subsídios que os países desenvolvidos praticam, junto aos seus agricultores.

Por fim, a despeito dos bem-vindos esforços recentes dos órgãos reguladores para que tenhamos um maior controle sobre operações com derivativos, SIVs e demais modernidades financeiras, causadores de boa parte dos problemas no sistema bancário, o fato é que estamos, como nunca, dependentes do FED. Aparentemente o processo de relaxamento monetário será interrompido, visto que a inflação ganha musculatura. Se, no médio prazo, os juros forem forçados a subir por sua causa, dúvidas inquietantes surgirão sobre o futuro que, até pouco tempo, mostrava-se exuberante para a economia mundial. Sentiremos saudades do que supostamente viveríamos.

Alexandre Espírito Santo é economista-chefe da Plenus Gestão de Recursos e Diretor do Curso de Relações Internacionais da ESPM-RJ.