Título: O povo sob bombas
Autor: Sabadini, Tatiana
Fonte: Correio Braziliense, 22/02/2011, Mundo, p. 20

REVOLTA NO ORIENTE MÉDIO Aviões e helicópteros disparam contra opositores do governo na capital da Líbia. Diplomatas e até militares começam a abandonar o regime do ditador Muamar Kadafi

O ditador Muamar Kadafi resolveu colocar seu poder à prova contra a revolta popular e usar a força sem restrições para deter os manifestantes. Ontem, aviões militares atiraram bombas sobre a multidão na capital, Trípoli, e a polícia usou metralhadoras contra quem fazia parte dos protestos. A ação pode ter deixado pelo menos 250 mortos, segundo a rede de TV Al-Jazeera. Desde o início dos protestos, na terça-feira passada, pelo menos 400 pessoas morreram, segundo organizações internacionais. Enquanto tenta sufocar a revolta, o regime dá sinais de que começa a se desintegrar. Embaixadores e ministros deixaram seus postos, a missão líbia nas Nações Unidas rompeu laços com o governo e acusou o presidente do crime de genocídio. Dois pilotos da Força Área resolveram pedir asilo na Ilha de Malta, porque se recusaram a bombardear a população civil.

Kadafi, que ainda não havia se pronunciado desde o início da revolta, fez na noite de ontem uma breve aparição na TV estatal para desautorizar ¿rumores maldosos¿ de que tivesse deixado o país. ¿Estou em Trípoli, não na Venezuela¿, afirmou, desmentindo versões que começaram a circular no domingo e se repetiram ontem. ¿Não acreditem nos cães da mídia (estrangeira)¿, acrescentou. O governo do presidente Hugo Chávez ratificou a declaração. Outra versão, de que o ditador teria pedido asilo político no Brasil, foi desmentida pelo chanceler Antonio Patriota: ¿A informação não procede¿.

Na tentativa de calar os manifestantes, que há uma semana protestam contra o regime de Kadafi, o governo usou o poderio militar para retomar o controle de várias cidades e da própria capital. Alguns bairros de Trípoli foram bombardeados, enquanto o Exército e a polícia atiravam contra o povo. A multidão, por sua vez, incendiou delegacias e prédios do governo. Na noite de domingo, em um discurso transmitido pela televisão estatal, o filho do ditador, Saif Al-Islam, afirmou que a população deveria acabar com a rebelião ou sofrer com uma guerra civil.

Nos últimos dias, o regime procurou tirar dos manifestantes sua principal arma: a internet. Porém, os opositores continuam a postar, no YouTube e no Facebook, vídeos de confrontos e de mortos no conflito. ¿O que estamos testemunhando hoje é inimaginável. Aviões de guerra e helicópteros estão bombardeando indiscriminadamente uma área após a outra, e atiram em qualquer um que se movimente¿, denunciou à rede Al Jazeera Adel Mohamed Saleh, morador da capital.

Também em Trípoli, Iman El-Maghribi, 55 anos, procura refúgio em casa. A professora acredita que não há alternativa para o país, apenas a mudança. ¿Não existem tiros ou bombas suficientes para calar o país inteiro. Tenho certeza absoluta de que o regime vai cair e Kadafi deixará o país. É uma verdadeira revolução, e outros países devem seguir o exemplo. Isso é o que sonhamos durante a vida inteira e está acontecendo diante dos nossos olhos¿, disse Iman ao Correio.

O violento confronto entre manifestantes e policiais trouxe consequências políticas. O ministro da Justiça, Mustafá Abdel Yalil, renunciou para protestar contra ¿o uso excessivo da força militar¿. Os embaixadores líbios na Índia e na China renunciaram, por não concordarem com a repressão. Na ONU, a representação da Líbia rompeu com o Estado. O vice-embaixador Ibrahim Al-Dabbashi acusou Kadafi de genocídio. ¿O presidente tem seus mercenários em todos os lugares. Quando qualquer manifestante aparece, a ordem é matar¿, disse à rede BBC.

Deserção Dois aviões da Força Aérea líbia aterrissaram ontem em Malta. Segundo informações do governo local, os pilotos pediram asilo porque se recusaram a bombardear a população. A Itália decretou alerta máximo em todas as suas bases aéreas, por causa da crise. Dois helicópteros civis também desembarcaram na ilha italiana para fugir dos conflitos.

Efeito dominó A revolta continua em outros países árabes. No Barein, milhares de opositores saíram às ruas contra o rei Hamad Ben Isa Al-Khalifa. O governo se comprometeu a fazer reformas e ordenou a libertação de prisioneiros da maioria religiosa muçulmana xiita. Novas manifestações se realizaram também em cidades do Marrocos, onde confrontos com a polícia deixaram cinco mortos e 120 feridos desde domingo. No Iêmen, depois de nove dias de manifestações, os parlamentares resolveram unir-se aos opositores do presidente Ali Abdullah Saleh.