Título: Diversidade, em vez de unanimidade
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 18/02/2005, EU & FIM DE SEMANA, p. 10/15

Manifestantes saem às ruas, em Moscou e outras cidades russas, para protestar contra mudanças no sistema de previdência social. O Consenso de Washington tem alguma coisa a ver com isso? Não é improvável que alguém veja na reforma previdenciária pretendida por Vladimir Putin uma pitada de inspiração no decálogo demonizado como a tábua de leis do capitalismo selvagem. Mas também se poderia dizer que está aí apenas uma coincidência entre o que o Consenso de Washington recomendava no final dos anos 1980 em matéria de disciplina fiscal (veja quadro na página 14) e uma necessidade de reforma percebida de modo espontâneo pelo governo russo numa área crítica de suas contas domésticas. O livro "Diversity in Development: Reconsidering the Washington Consensus" é uma boa contribuição para o debate - que, evidentemente, nunca termina - sobre os modos de países pensarem o seu futuro e torná-lo melhor que o presente com diferentes políticas de estabilização e crescimento. Sem a imposição de receituários de suposta validade universal, como se pretendia com o Consenso de Washington, diz o editor e economista Jan Joost Teunissen na introdução. O livro, uma publicação do Fondad - Forum on Debt and Development, com sede na Holanda, traz análises de estratégias de desenvolvimento aplicadas nos últimos 25 anos e indaga quais políticas melhor funcionariam hoje na Ásia, América Latina e África, seguindo-se, ou não, as recomendações do Consenso de Washington. As respostas são dadas por professores de economia da Ásia, América Latina, EUA, África e Europa, ex-ministros e ex-presidentes de bancos centrais e altos funcionários do Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio, FMI e Nações Unidas. Todos os artigos estão disponíveis na internet ( http://www.fondad.org/publica tions/diversity/contents.htm ). O tema introdutório, "Serious Inadequacies of the Washington Consensus: Misunderstanding the Poor by the Brightest", foi entregue a Wing Thye Woo, professor do departamento de economia da Universidade da Califórnia e conselheiro especial do Projeto do Milênio, da ONU, para as questões das economias do Leste da Ásia. Wing mostra, no miolo de sua argumentação crítica, que a primeira versão do Consenso foi desdobrada, saindo-se do foco restrito à liberalização econômica e privatização, para o reconhecimento de que instituições também são importantes em processos de estabilização e desenvolvimento. Nem por isso a agenda do Consenso estaria livre de reparos. Para ficar no rebalanceamento de focos: de quais instituições se está falando? Em entrevista ao Valor, Wing disse que é preciso ter cuidado quando se fala de "instituições", palavra que ultimamente veio ganhando espaço como expressão de panacéia para os males de economias encruadas em geral, ao lado de disciplina macroeconômica, economia de mercado e abertura para o mundo, as três idéias essenciais contidas no Consenso de Washington. "Instituições' são um conceito amplo, que pode ser facilmente mal utilizado. Há aqui uma armadilha semântica", adverte Wing. Um sistema bancário de boa qualidade funcional e bem regulamentado, por exemplo, pode ajudar no crescimento econômico, mas não será a "mais importante instituição a influir para o crescimento em cada país". Para alguns países africanos, as instituições mais importantes são aquelas, nas áreas de educação e saúde, que movimentam programas eficientes de treinamento de pessoas e as mantêm saudáveis. Na linguagem usual, porém, observa Wing, o termo "instituições" não abrange instituições das áreas de educação e saúde, mas refere-se a instituições econômicas de sentido estrito, como mercados acionários bem fiscalizados, sistema judiciário livre de corrupção, burocracias estatais eficientes. Wing entende que, para ter-se crescimento auto-sustentado, são importantes as instituições definidas no sentido estrito usual, e são imprescindíveis aquelas outras que configuram sistemas como o educacional, de saúde e científico. Essas são áreas em que o Estado não marca presença apenas como formulador de políticas públicas, mas nas quais também é agente de sua implementação. Contudo, afirma Wing em seu artigo, "se o planejamento central suprimiu a economia privada de mercado, com o Consenso de Washington há o perigo de recusar-se ao Estado o papel legítimo de provedor de uma importante variedade de bens públicos". Foto: Divulgação

Bjorn Lomborg: Idéias do Consenso de Copenhague para governos gastarem US$ 50 bilhões começam pelo combate à aids E vai adiante: o Consenso de Washington "não compreende" que os mais fundamentais fatores de crescimento numa economia predominantemente de mercado privado estão embutidos na inovação tecnológica e que o Estado pode desempenhar papel importante nesse campo, criando condições que facilitem o desenvolvimento de iniciativas. "O Consenso de Washington tem foco excessivamente direcionado para o crescimento pela via do comércio, deixando de considerar que o crescimento pela via da ciência vai se tornando sempre mais importante", afirma Wing. O Brasil não seria um bom exemplo de país que adotou políticas baseadas no Consenso de Washington e, assim, preparou-se para um novo período de crescimento econômico que acontece agora? "Partes do Brasil estão crescendo bastante bem como consequência de políticas baseadas no Consenso de Washington", admite Wing, "mas outras não estão crescendo". As partes que não crescem "requerem ações adicionais de política, além daquelas inspiradas no Consenso de Washington". Seriam políticas específicas, de circunstância, adotadas para combater doenças típicas, por exemplo, e tirar certas regiões do isolamento geográfico. "Se as regiões pobres do Brasil fossem um país à parte, iriam requerer ajuda externa para iniciar seu processo de crescimento auto-sustentado. Políticas baseadas apenas no Consenso de Washington certamente não seriam suficientes." Na opinião de Wing, há uma via alternativa de cooperação internacional. Ele se diz otimista quanto ao que seria um provável despertar dos países desenvolvidos para a importância (se não a conveniência) de aumentarem a ajuda financeira aos países pobres. Até agora, tem sido bastante irregular, e geralmente contida, a destinação de recursos para esse fim nos orçamentos americanos, europeus e asiáticos. "Contudo, a maioria das pessoas nos países ricos, de classe média, são como pessoas em outras partes do mundo, dispostas a ajudar os menos afortunados, desde que seu dinheiro não seja desperdiçado e não vá para os bolsos de funcionários de governo." O projeto das Metas de Desenvolvimento do Milênio, da ONU, poderá funcionar como elo de aproximação de doadores e receptores. Como lembra Wing, os recursos do programa são liberados por etapas, de acordo com o que seja a qualidade de uso comprovada em fases anteriores. Além disso, haverá outros mecanismos de monitoramento e auditoria. E não se trata, simplesmente, de "ajuda de emergência". O projeto foi formulado de maneira que possa funcionar também como um programa de desenvolvimento. "A ajuda emergencial é para enfrentar a fome e epidemias. A ajuda para o desenvolvimento cria as condições para que o país alcance o crescimento econômico auto-sustentado", explica Wing. Seu exemplo de lugar certo para esse tipo de ajuda é a África, a parte do mundo em que mais chocantes são as situações de miséria. "Há uma ajuda mínima para o desenvolvimento a ser oferecida antes que muitos países africanos possam iniciar o crescimento auto-sustentado. Penso que os eleitores nos países desenvolvidos apoiarão não apenas a ajuda de emergência, como se viu no recente episódio do tsunami que devastou as costas do Oceano Índico, mas também a ajuda para o desenvolvimento, se lhes for assegurado que essa finalidade será alcançada." Em suma, trata-se de garantir às pessoas nos países doadores, "de instintiva, mas cautelosa generosidade", que "não estão apenas dando peixes aos famintos, mas também estão contribuindo para ensiná-los a pescar". Suponha-se, então, que os responsáveis por políticas públicas, nos países em desenvolvimento, pudesem contar com US$ 50 bilhões que, hipoteticamente, fossem colocados à sua disposição por fontes externas de ajuda. Em quais áreas esse dinheiro todo poderia encontrar as melhores aplicações, para irrigar esforços próprios de desenvolvimento dos países pobres? Da pergunta nasceu uma escala de prioridades (ver quadro na página 13), o chamado Consenso de Copenhague, endereçada tanto aos países necessitados de recursos para seus projetos de utilidade social, como a entidades e outros governos envolvidos no processo internacional de ajuda para o desenvolvimento. As recomendações foram estabelecidas com base em estudos e debates a que se entregaram renomados economistas. À frente da iniciativa, promovida pelo Instituto de Estudos Ambientais da Dinamarca, com o apoio do governo daquele país e da revista "The Economist", estava Bjorn Lomborg, professor associado de estatística no departamento de ciência política da Universidade de Aarhus, Dinamarca, que ganhou projeção internacional quando publicou "The Skeptical Environmentalist", em 2001. Nesse livro, ele faz crítica rigorosa, estatisticamente fundamentada, de crenças estabelecidas sobre o que seria um suposto agravamento progressivo das condições ambientais no mundo - exatamente o oposto do que estaria acontecendo. Em novo livro, "Global Crises, Global Solutions", Lomborg apresenta e comenta as propostas do Consenso de Copenhague, retomando o argumento de que políticas públicas devem basear-se em prioridades e que estas, para se justificarem, devem estar baseadas em evidências de análise econômica que explicitem as relações de custo-benefício de cada alternativa considerada. Está aí implícita a suposição de que é necessário, e seria possível, racionalizar atitudes de formuladores de políticas públicas até um ponto ótimo de eficiência na distribuição de recursos escassos. Lomborg acha que o Consenso de Copenhague será poderoso instrumento de persuasão. Em entrevista ao Valor, ele disse que a lista de prioridades recomendadas "deixa claro em quais pontos o mundo deve concentrar esforços para fazer o melhor para a maioria das pessoas". Assim, "as organizações que trabalharem no topo da lista (onde estão os projetos de maior eficiência na alocação de recursos) terão bons argumentos para convencer doadores; aquelas que preferirem defender projetos da parte de baixo terão questões críticas pela frente, para justificar porque alguém deveria financiar seus projetos". Para os políticos, a lista também é apenas indicativa, claro. "Eles poderão ter razões para discordar. Mas você precisa de uma razão muito boa para opor-se a um grupo de economistas renomados." Em primeiríssimo lugar, na lista do Consenso de Copenhague, aparece o controle da aids. Seriam necessários US$ 27 bilhões para evitar cerca de 30 milhões de novas infecções até 2010. Depois, ainda no rol de problemas cuja solução depende mais diretamente de ajuda externa - e de sua correta utilização por governos - vêm a distribuição de suplementos alimentares e o controle e tratamento da malária. Entre estes dois últimos itens foi colocada a liberalização do comércio, principalmente com redução unilateral de tarifas e barreiras não-tarifárias e eliminação de subsídios agrícolas. Projetos ambientais relacionados a questões de clima ficaram bem no final da lista. Lomborg explica que os especialistas convidados a opinar consideraram essas iniciativas como "maus projetos" porque seus custos seriam superiores aos benefícios que trazem. "Isso não significa que devemos ignorar as mudanças climáticas. Deveríamos, por exemplo, procurar a melhor combinação de incentivos e regulamentos para encorajar o investimento em novas tecnologias de energia renovável", admite Lomborg. De toda forma, o fato é que "o problema urgente da maioria pobre deste mundo não são as mudanças climáticas. Seus problemas são bem mais básicos. Não morrer de doenças que são fáceis de evitar. Não estar mal-nutrido por falta de simples micronutrientes. Não ser impedido de explorar oportunidades na economia global pela falta de livre comércio." Conectam-se no alto da lista, portanto, recomendações que sintetizam a idéia de combinação de ajuda externa para o desenvolvimento e esforços próprios dos paises receptores pela via do comércio internacional - na direção do que disse Wing Thye Woo. Talvez esteja nessa associação de iniciativas que aproximam governos de países desenvolvidos e de países em desenvolvimento, ao mesmo tempo que se cultivam práticas arejadas de comércio, as bases de um consenso de utilidade realmente universal, que respeite e estimule a diversidade de idéias e de caminhos para o desenvolvimento. Em qualquer hipótese, parece indiscutível que instituições nascidas de debates democráticos e que se mostrem eficientes -- no sentido de se alimentarem de uma boa relação entre recursos aplicados e resultados obtidos - sempre serão peças essenciais nesse processo. O economista John Williamson cunhou a expressão "Consenso de Washington" em 1989. Na forma escrita, o conceito apareceu pela primeira vez em anotações que Williamson redigiu, no mesmo ano, como material de apoio para conferência, no Institute for International Economics, em que se examinaria a extensão em que idéias de economia do desenvolvimento, predominantes em políticas econômicas de países latino-americanos nos anos 1950, estavam sendo substituídas por outras, que já há bastante tempo eram consideradas apropriadas pela OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, entidade que reúne as principais economias do mundo). Em palestra que fez em Barcelona em setembro do ano passado ("A Short History of the Washington Consensus", que se pode ler em www.iie.com/publications/papers/williamson0904-2.pdf ), Williamson lembrou que, procurando assegurar-se de que as anotações para aquela conferência correspondiam a um conjunto de questões de aceitação comum, listou dez políticas que, a seu ver, "mais ou menos todos em Washington admitiriam ser mais ou menos necessárias na América Latina. Chamei a isso de Consenso de Washington."