Título: Câmara faz a mais séria tentativa de sepultar a LRF
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 04/06/2008, Opinião, p. A12

A Lei de Responsabilidade Fiscal completou oito anos em maio e está ameaçada de não chegar ao próximo aniversário. Na tentativa até agora mais bem-sucedida de dinamitar a legislação, a Câmara dos Deputados aprovou por 324 votos a um, a de Arnaldo Madeira (PSDB-SP), um projeto que elimina de vez a necessidade de cumprimento do teto com despesas de pessoal nos três níveis do poder, e do teto para limite de endividamento, para a obtenção de novos créditos ou para a renegociação do principal das dívidas estaduais e municipais.

À medida que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva busca alianças cada vez mais amplas e corteja a unanimidade, sua base de apoio ganha em audácia para tentar desfazer aos poucos toda a defesa criada ao longo de anos para impedir a falta de zelo para com o dinheiro público. Desta vez a ofensiva foi comandada pelo líder do governo na Câmara, o gaúcho Henrique Fontana, depois de o próprio governo, em uma atitude altamente arriscada, ter proposto a flexibilização para que Estados não fossem punidos pelo descumprimento do limite de gasto de pessoal, caso o Legislativo ou o Judiciário, ou ambos, o ultrapassassem. Não há nada de estranho nisso. O PT sempre foi contrário à LRF e, no poder, aceitou-a a contragosto. Agora que o país parece próximo ao nirvana do crescimento e as receitas públicas batem recordes, soou o sinal da gastança, com a participação dos entes federados.

A LRF foi um marco na administração pública brasileira. Embora praticamente nenhum ocupante de cargo público tenha sido levado à prisão por descumprir suas regras, houve um enorme esforço de Estados e municípios para se adequarem a ela. Esse esforço foi bem-sucedido e hoje os Estados e municípios que ainda não se enquadram nas limitações legais são em pequeno número. As emendas apresentadas ao projeto do governo na Câmara comprovam o que já se sabia intuitivamente: na primeira chance dada, os parlamentares tentariam desfigurá-la.

Nenhum dos argumentos apresentados pelos deputados petistas pára de pé. Hoje não há punições para o Legislativo e Judiciário, cujos gastos excessivos impedem a obtenção de novos créditos. É o caso de criá-las e não, como foi feito, de simplesmente revogar o teto que restava, o do Executivo. Não prática, portanto, o limite de 60% de gastos com pessoal vigente deixa de existir, ou torna-se irrelevante, o que dá no mesmo.

Mais grave é a tentativa de jogar para o espaço também o teto do endividamento. Segundo o deputado Henrique Fontana, não se deve proibir os Estados de buscarem um alívio do caixa renegociando dívidas. Além disso, um dos principais indícios de problemas financeiros dos Estados seria justamente a dificuldade de reduzir despesas com pessoal. Em ambos os casos, vai-se diretamente contra o espírito da legislação. Se um governante não consegue sequer conter despesas com pessoal - as mais influenciadas pelo clientelismo político -, quem lhe emprestará dinheiro a sério e a bom preço?

Depois, a idéia de que se possa conseguir melhores condições do que as que a União concedeu aos Estados e municípios não passa de fantasia. Na maior parte dos casos, os Estados quebrados teriam de pagar mais se recorressem ao setor financeiro privado. Primeiro, porque são clientes de alto risco e, no caso dos governadores, com poder legal para em alguns casos mudar condições contratuais. Segundo, têm tradição consolidada de maus pagadores, até antes da LRF. Terceiro, todas as dívidas renegociadas exigiram subsídios do Tesouro. Quarto, por mais alto que seja o custo da dívida renegociada, ele é bastante inferior ao custo de mercado que um banco cobra de bons clientes no crédito para capital de giro.

A base governista visa essencialmente abrir espaço para novo endividamento, livrando-se das condições e amarras dos velhos débitos que muitos dizem não conseguir cumprir, apesar dos seus termos bastante razoáveis. A base está apenas sendo coerente com reiteradas decisões contra o erário público. Foi ela que dias antes aprovou a elevação em 7500 do número de vereadores no país. Em seguida, tenta mandar para o espaço os limites de endividamento dos Legislativos e, logo a seguir, os do Executivo. É uma desfaçatez que finja estar movida pela busca de melhores condições para pagar dívidas. Cabe ao Senado sepultar essas manobras.