Título: Fora da bula
Autor: Valenti, Graziella; Adachi, Vanessa
Fonte: Valor Econômico, 04/06/2008, Eu, p. D1

Estímulo usado para convencer os centralizadores empresários brasileiros a levar suas companhias à bolsa, as cláusulas estatutárias que dificultam tomadas hostis de controle, conhecidas como "pílulas de veneno", disseminaram-se entre as novatas de capital aberto e só agora começam a mostrar as armadilhas da auto-medicação.

As super dosagens das restrições às aquisições de controle foram criadas por escritórios de advocacia e bancos de investimento brasileiros como remédio ao temor da perda de poder dos controladores. Só em meados do ano passado é que o debate sobre o tema se aprofundou entre os coordenadores das emissões de ações, que passaram a usar modelos mais flexíveis.

Até a abertura de capital da Natura, em 2004, esse mecanismo era pouco conhecido por aqui. Mas, na linha de produção em que se transformou o movimento de abertura de capitais no Brasil nos últimos anos, alguns descuidos se alastraram como praga pelos estatutos. Esses documentos eram quase uma arte infantil de recortar e colar, o que gerou situações esdrúxulas a serem vencidas. E uma vez aprovados não há o que fazer: vale o que está escrito.

Não fosse a amenização das restrições a Hypermarcas enfrentaria uma esquisita discussão após a compra da Farmasa, anunciada segunda-feira. Como se trata de uma aquisição com pagamento em ações, os donos do laboratório (familia Samaja e GP Investimentos) ficarão com 20% da Hypermarcas em troca do laboratório.

Em geral, os estatutos das novatas obrigam oferta a todos os acionistas - e com prêmios elevados - quando um investidor, individualmente ou em grupo, alcança percentuais significativos do capital da empresa. Pelas primeiras pílulas, alcançar a fatia que os Samaja e a GP Investimentos terão na companhia de consumo significaria ter de fazer uma oferta aos demais acionistas. O estatuto de algumas empresas não diferencia em que circunstância o investidor será obrigado a comprar as ações dos outros sócios. Mesmo que tenha virado acionista após uma incorporação ou troca de controle.

A despeito de não trazer graves conseqüências, a eventual criação de um dilema desse pediria uma solução para evitar questionamentos futuros. E há pílulas muito restritivas, em que as ofertas são disparadas com aquisições de fatias de até 5%. Mas a Hypermarcas não chegou nem perto. Seu estatuto possui uma pílula que somente valeria caso seu controle fosse pulverizado, o que não ocorreu ainda. Além disso, a redação já está mais cuidadosa.

Para o ex-presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) Francisco da Costa e Silva, a solução para as questões excessivamente exóticas é o bom senso. "As normas têm que ser interpretadas, no seu conjunto, de acordo com as práticas de mercado. A pior interpretação é a literal."

Porém, os textos espalhados pelas mais de cem novas empresas abertas brasileiras já pregaram algumas peças por aí. E as potenciais discussões vêm sendo comentadas nos bastidores do meio jurídico.

No ano passado, uma multinacional estudava cuidadosamente a possibilidade de fazer uma oferta de compra do controle de uma empresa listada no Novo Mercado da Bovespa quando tomou um susto. Percebeu que uma cláusula do estatuto social da empresa-alvo parecia inviabilizar seus planos.

A polêmica regra diz respeito ao prêmio que deve ser pago aos minoritários em caso de oferta pública. Há vários critérios para definir o preço a ser ofertado. Um deles concentra a controvérsia: diz que o valor deve ser baseado na cotação média das ações da empresa em um período "anterior à realização da oferta".

O problema todo está na formulação "anterior à realização". Afinal, o que é a realização da oferta? Os tais advogados da multinacional citada entenderam que seria o leilão em si, quando as ações serão compradas efetivamente. Segundo essa interpretação, a operação tornaria-se inviável. Porque, uma vez anunciada a intenção de realizar a oferta e publicado o edital - 30 dias antes do leilão - estará aberta a temporada de especulações na bolsa. Fatalmente haveria uma corrida de investidores que inflaria o preço das ações e deixaria o prêmio, que já seria elevado, praticamente impagável. E não há consenso sobre as extensão dos estragos desse debate.

Para Carlos Mello, sócio do Machado, Meyer, Sendacz e Opice, há de fato uma imprecisão na redação de vários estatutos, "a forma como está escrito não é a correta, porque deixa o comprador do controle sujeito à oscilação dos preços das ações após o anúncio da oferta pública de aquisição", afirma. "É um problema", avalia.

Já na opinião de Marcelo Trindade, ex-presidente da CVM, o termo "realizar" deve ser interpretado como o lançamento da oferta, ou seja, o seu anúncio. Essa interpretação, segundo ele, é a mais adequada para atender à finalidade da cláusula de usar a cotação de mercado como uma das referências de preço à oferta. Mas, para se ter uma idéia da complexidade dos questionamentos sobre as tais pílulas, Trindade não respondeu à questão de forma definitiva prontamente. Pensou e repensou a polêmica até chegar a sua opinião final.

Francisco Müssnich, sócio do BMA, acredita que não há margem para discussão. "O correto é usar como referência o preço antes da 'contaminação' pelo anúncio da oferta", diz ele. Ou seja, o prazo tem que ser contado até o anúncio da intenção da oferta.

As pílulas contemplam uma multiplicidade de discussões. Algumas podem demandas medidas mais drásticas. Há o caso, por exemplo, das empresas que colocaram no estatuto que os acionistas que votarem a favor da retirada da pílula seriam obrigados a fazer oferta aos acionistas nos termos previstos. Para o jurista Nelson Eizirk, é preciso avaliar se essa cláusula tem validade, pois pode ser ilegal por restringir o poder de voto do acionista. No entanto, enfatizou que o tema é difícil.

Não por acaso que há empresas com esse tipo de estatuto que avaliam entrar na Justiça contra seu próprio estatuto ou fazer uma consulta à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) sobre sua validade.

Por tudo isso, e mais a sabida dificuldade de consolidação causada pelas pílulas, que o tema despertou a atenção do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC). A organização prepara uma carta diretriz que trará orientações sobre o melhor uso dessa ferramenta. Na avaliação do presidente do conselho de administração do IBGC, Mauro Rodrigues da Cunha, muitas empresas desconhecem as conseqüências do que têm no estatuto. "Do jeito que está, é ruim. Há quem já tenha deixado de avaliar a compra de empresa."