Título: A evasão de divisas no contexto atual do sistema financeiro
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 17/06/2008, Legislação & Tributos, p. E2

Atualmente, a norma penal do artigo 22 da Lei nº 7.492, de 1986, conhecida pela denominação de crime de evasão de divisas, não corresponde mais ao significado social que motivou sua concepção. Vigente até os dias atuais, o artigo tipifica três condutas de evasão de divisas. A primeira, no caput do artigo, consiste em efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover o crime. A segunda, na primeira parte do parágrafo único, trata de promover, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior. E, por fim, a terceira, na segunda parte do mesmo parágrafo, consiste em manter no exterior depósitos não declarados à repartição federal competente.

No que concerne à expressão "sem autorização legal" contida no texto da norma, cumpre esclarecer que não se trata de uma autorização direta e específica acerca da operação financeira em si, mas de uma autorização por via indireta. Eis que, para agir sem incidência formal da norma, basta que o interessado promova a transferência por meio de uma instituição financeira autorizada a operar câmbio pelo Banco Central do Brasil, nos termos da Lei nº 4.595, de 1964.

Inicialmente, convém ponderar que a lei foi concebida em um contexto de política cambial de proteção monetária, inexistente neste momento. Ao prescrever a proibição de remessa de moeda ou divisa ao exterior, a norma significava, no tecido das relações socioeconômicas, a proteção ao então vulnerável sistema financeiro nacional face aos mercados estrangeiros.

No entanto, atualmente, em um ambiente de economia global quase sem fronteiras, não faz mais sentido uma política protetora. Tanto é assim que, com o passar do tempo, os limites relativos ao investimento brasileiro no exterior foram majorados até que efetivamente suprimidos pelo Banco Central. É evidente que a moeda nacional não é mais vulnerável como outrora.

Assim, os crimes de evasão de divisas não têm mais o mesmo significado social. Com as gradativas mudanças no âmbito socioeconômico, dadas pelo dinamismo da vida em movimento, o objeto de proteção da norma simplesmente não mais carece de proteção penal. Em outras palavras, hoje o cidadão pode enviar, legalmente, o quanto lhe aprouver para o exterior que não haverá risco digno de repressão penal ao sistema financeiro do país. Dessa forma, o contexto do qual emanava o sentido da norma desapareceu, porque o texto da lei penal significava, no plano social, a manutenção do equilíbrio do sistema cambial. Eis o sentido da criminalização que, como visto, deixou de existir.

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Conseqüência disso é que não há mais ameaça ou lesão ao bem jurídico, ainda tutelado pelo ordenamento jurídico-penal. Desse modo, as normas penais devem incidir apenas com o fim de proteger bens jurídicos que careçam de proteção no estrato social e se achem ameaçados ou tenham sofrido efetiva lesão. Em termos kelsenianos, o direito assegura meios (tipificação) para garantir fins.

Em exercício de hermenêutica, diante de um evento o operador do direito deve, já no juízo de subsunção, recolher do texto da norma sua significação e respectiva relação com o conjunto articulado de significações normativas, bem como superar os limites lógico-semânticos e considerar o imperativo axiomático pressuposto da norma. Significa dizer que, para a norma penal incidir, imputando ao sujeito penas mitigadoras da liberdade, não é bastante a subsunção do fato à norma por operação lógico-formal. Com efeito, não se deve perder de vista que o ambiente cultural conquistado historicamente pelo homem consagra, sob a perspectiva ética ou antropofilosófica, a liberdade e a racionalidade como noções que compõem sua essência.

Não é por acaso que a norma penal deve incidir de modo fragmentário, em últimos casos, sob a égide da estrita legalidade, apenas quando o bem tutelado pelo direito sofra ameaça ou efetivamente lesado o for. É o desvalor da conduta. Ora, se ele já não merece ser protegido, por evidências colhidas no meio social, também não há que se falar em lesão ou ameaça. Então, a verificação da intensidade da lesão, ou do grau de exposição a risco do bem juridicamente tutelado é relevante para o juízo de subsunção. Inexistindo dano, ou sendo ele mínimo, ou inexistindo potencialidade de dano, ou sendo ela mínima, não se aperfeiçoa a adequação do evento à norma.

Ontologicamente, não há crime sem ameaça ou dano. Para o direito, não há crime sem lei anterior que o defina. A lei define crimes, criando tipificações. O texto da norma constitucional, que estabelece a reserva legal em matéria penal, ao reportar-se a crime, semanticamente fala do crime em sua acepção ontológica. Por assim dizer, o ordenamento jurídico contempla essa noção, que envolve a idéia de risco ou de dano efetivo como atributos do crime. Dessa maneira, aquele que fecha câmbio por meio de entidade não autorizada, com a intenção de remeter moeda ou divisa ao exterior, ou quem promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior ou nele mantém depósitos não declarados, deveria praticar tão somente um ilícito civil, e não crime.

Note-se, porém, que poderá incorrer no crime de lavagem de dinheiro aquele que fechar câmbio, ou efetivamente transferir recursos ao exterior, pela via legal ou não, bem como manter depósito no exterior, com ou sem declaração, como meio para ocultar ou dissimular recursos provenientes direta ou indiretamente de crime. Ou, na hipótese de o sujeito assim proceder como meio para ocultar dinheiro tributável, estaria ele incurso em crime contra a ordem tributária. Portanto, a norma que estabelece os crimes de evasão de divisas carece de fundamento de validade no ordenamento jurídico-penal, e por assim dizer reclama, notadamente, por juízo de subsunção negativo.

Eduardo Küpper Pacheco de Aguirre é advogado criminalista e sócio do escritório Trevisioli Advogados Associados

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