Título: Governo perde apoio e Argentina afunda na crise política
Autor: Rocha, Janes
Fonte: Valor Econômico, 17/06/2008, Internacional, p. A11

A disputa entre ruralistas e o governo está mergulhando a Argentina na pior crise política desde o fatídico dezembro de 2001, em que o país teve cinco presidentes em dez dias, antes de entrar numa histórica recessão. O que começou como uma resistência de um setor da economia (os agricultores) a um aumento de impostos se transformou em três meses numa disputa que parece interminável e que agora resvala para o confronto aberto. Ontem já se falava com todas as letras em golpe de Estado.

O clima de tensão foi agravado com um panelaço na noite de ontem em várias áreas de Buenos Aires, como forma de pressão para que o governo atenda a reivindicação dos ruralistas e recue do aumento de impostos sobre as exportações de grãos, decretados em 11 de março. Foi a segunda vez que os portenhos saíram às ruas em protesto contra o governo este ano. O mote é a "defesa do campo", muitos estão aproveitando a oportunidade para expressar insatisfação. "Estamos cansados da inflação, da corrupção, da arrogância deste governo", disse ao Valor Ana Maria Navarro, publicitária de 26 anos que batia numa panela em meio à multidão ontem à noite na esquina das Avenidas Santa Fé e Callao.

O partido do governo, o Justicialista (peronista), que acabou de sair de cinco anos de intervenção judicial, rachou em dois grupos, um dominado pelo ex-presidente Néstor Kirchner, e outro, pelo ex-presidente Eduardo Duhalde.

O jornal "La Nación" afirmou que Duhalde está organizando uma facção de peronistas não-alinhados ao governo, incluindo governadores, prefeitos e congressistas, que se chamará União Popular. Esse grupo já existia; a novidade é que está sendo engrossado por novos dissidentes, como os governadores das províncias de Córdoba, Santa Fé, San Luis e prefeitos das diversas cidades mais afetadas pela paralisação dos agricultores.

Estes políticos estavam com o governo até antes do locaute agropecuário, mas não concordam com a forma como a presidente Cristina Kirchner está lidando com o protesto e decidiram apoiar os ruralistas. Isso os afastou automaticamente da coalizão kirchnerista - o casal Kirchner não admite rebeldia, nem questionamentos públicos sobre suas decisões.

O advogado Eduardo Duhalde, 67, foi quem assumiu a Presidência em janeiro de 2002, em meio à crise, e conseguiu estabilizar a situação até poder passar o governo a Néstor Kirchner em 2003. Depois disso, saiu de cena e prometeu que nunca mais faria política. Agora, aparentemente, mudou de idéia.

A reação de Néstor Kirchner à reaparição de Duhalde foi imediata. Ele mandou seu mais combativo aliado, o dirigente social Luis D ? Elia, acusar publicamente a Duhalde de estar preparando um golpe junto com as entidades dos ruralistas e o grupo de mídia "Clarín", dono do jornal mais lido do país. "Ele [Duhalde] organizou o golpe contra [o ex-presidente Fernando] De la Rúa e hoje está preparando o golpe contra Kirchner", afirmou D ? Elia. Duhalde divulgou uma nota dizendo que não iria responder a D'Elia para não estimular o clima de confronto.

"Tenho conversado com gente de toda a oposição e ninguém fala em golpe ou em tirar a presidenta do poder. Não há indício de golpe, é uma paranóia", afirma, perplexo, Sergio Berensztein, um dos mais respeitados analistas políticos do país. Ele explica o surgimento dessa divisão peronista como uma tentativa de capitalizar politicamente um descontentamento que já existia, antes mesmo das eleições presidenciais de outubro de 2007, com a alta da inflação e o estilo autoritário dos Kirchner.

Cristina representava uma esperança de manutenção do modelo econômico com uma correção do que não estava bem; por isso foi eleita com 45% dos votos e ampla vantagem sobre o segundo colocado, inclusive com apoio dos ruralistas. Ela chegou a conquistar mais de 60% dos votos nas províncias de mais forte atividade agropecuária. Mas essa esperança se frustrou nos primeiros meses da nova gestão, e a crise do campo agravou o sensação de frustração. A deterioração do clima político já prejudica a economia. Há vários indicadores de desaceleração, além de desabastecimento de combustíveis, alimentos e medicamentos por conta da paralisação de agricultores e caminhoneiros.