Título: O mal pode ser maior
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Fonte: Correio Braziliense, 24/02/2011, Opinião, p. 50

A revolta que tem feito governos ditatoriais sucumbirem no norte da África e no Oriente Médio é fato histórico tão relevante que suas possíveis consequências ainda não foram completamente observadas. Analisando-se apenas as trajetórias da vítima mais recente da ¿revolução¿, o egípcio Hosni Mubarak, e do alvo da vez, Muamar Kadafi, da Líbia, organismos de defesa dos direitos humanos e instituições multilaterais, como as Nações Unidas, poderiam obter uma relação substancial de crimes passíveis de uma longa e aprofundada investigação.

Os desdobramentos judiciais da derrocada dos ditadores já causa certa dor de cabeça para as novas autoridades egípcias e regimes aliados. Afinal, caso o movimento para levar Mubarak ao banco dos réus por conta das cerca de 370 mortes durante a revolta ganhe impulso, detalhes ainda mais nefastos sobre as manobras que mantiveram o ditador no poder durante três décadas ¿ com o beneplácito de outros governos, como o norte-americano e o israelense ¿ podem vir à tona e implicar militares e políticos egípcios e de outras nações. Julgá-lo no próprio Egito não seria possível neste momento, visto que não há um precedente no país para o indiciamento de um ex-governante.

Em relação a Kadafi, sua personalidade excêntrica e o envolvimento mais claro em ações terroristas tornaria ¿menos constrangedor¿ um julgamento em tribunal internacional. É necessário recordar, porém, que o ditador líbio ¿ acusado de participação no atentado, em 1988, contra o voo da Pan Am em Lockerbie (Escócia), no qual 270 pessoas morreram, e na explosão de uma bomba em uma boate em Berlim, dois anos antes ¿ se reaproximou do Ocidente na virada do século, entregando suspeitos do ataque ao avião e concordando em eliminar armas de destruição em massa.

Desde então, Kadafi cristalizou amizades, ou, ao menos, somou aliados para tornar seu governo linha-dura legítimo aos olhos de mais líderes estrangeiros. Foi assim com o italiano Silvio Berlusconi, com o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva e, à época, com o americano George W. Bush. As sanções contra a Líbia caíram, o país voltou a comercializar com liberdade seu petróleo, e, aos poucos, ganhou parceiros em vários continentes. Nada disso deve impedir que as Nações Unidas e outros organismos competentes apurem à exaustão fatos criminosos atribuídos aos governos hoje questionados.

Ainda não se sabe qual a verdadeira vontade política das grandes potências para aproveitar o momento e fortalecer mecanismos de direito internacional já estabelecidos para casos de crimes contra a humanidade. Lembremos evoluções recentes nesse sentido, como os julgamentos de Slobodan Milosevic, da antiga Iugoslávia, e Charles Taylor, da Libéria, no Tribunal Internacional de Haia, e a detenção de Augusto Pinochet na Espanha. São exemplos notórios de uma nova realidade, em que a punição de crimes contra os direitos humanos não é mais submetida a limites geográficos ou jurisdições anacrônicas. Será, ainda, ofuscada e impossibilitada por interesses políticos?