Título: Eleições põem Iraque no caminho da reconstrução
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 02/02/2005, Opinião, p. A10

As eleições no Iraque abriram o caminho para a construção de um governo democrático após décadas de ditaduras. Elas foram recebidas com um misto de júbilo e alívio pelo governo americano e com desdém e temor pelos líderes árabes, que estão à frente dos regimes antidemocráticos que dominam a paisagem política do Oriente Médio. É provável que a reação dos EUA fosse a mesma se o pleito de domingo registrasse um número muito menor de eleitores - sua própria realização era uma questão de honra. Para os iraquianos, ir às urnas, mesmo sob as terríveis condições existentes, foi uma forma de substituir um governo provisório praticamente nomeado pelos ocupantes americanos por outro que represente, ainda que muito imperfeitamente, sua vontade. Os resultados das urnas só serão conhecidos na semana que vem. O comparecimento foi massivo nas regiões curdas e xiitas e o boicote teve relativo sucesso nas zonas sunitas. As estimativas preliminares dão conta do voto de 60% dos 15 milhões de potenciais eleitores. Não há, entretanto, informes abrangentes e imparciais sobre isso e os números podem estar inflados pela propaganda das forças de ocupação. Mas uma evidência direta e irrecorrível do ânimo dos iraquianos e do relativo sucesso do jogo eleitoral foi a ação terrorista moderada, para os padrões pós-invasão, dos insurgentes sunitas e seus aliados da Al-Qaeda. Diante da decisão de milhões, os grupamentos terroristas sentiram-se batidos de antemão, já que para eles a vitória seria a não-realização pura e simples das eleições. Eles perderam uma importante batalha política. Além da determinação dos iraquianos de irem às urnas após meio século de tiranias, o comparecimento teve um apelo irresistível, que foi subestimado tanto pelos grupos armados sunitas como pelo governo americano. Instados a analisar a razão de seu voto, boa parte dos eleitores deu uma razão simples - quanto mais cedo a situação se normalizar, mais cedo as tropas americanas terão de se retirar do país. Essa questão vai dominar a agenda política iraquiana se a assembléia nacional resultante das eleições conseguir pôr de pé uma Constituição que seja amplamente aceita pela maioria do povo. As principais forças políticas estão conscientes de que o aparato do Estado está em escombros, e sem um de seus pilares, as forças armadas, é politicamente arriscada qualquer tentativa de apressar a retirada das tropas americanas. Por outro lado, para acelerar a reconstrução do Estado é preciso criar rapidamente um consenso político significativo, e a própria realização das eleições foi um passo importante nessa direção. Os primeiros movimentos das coalizões partidárias após o pleito confirmam essa direção. Como a mais provável força relativamente dominante na assembléia, a Aliança Iraquiana Unida, promovida pelo aiatolá Ali Al-Sistani, já faz acenos de aliança ao bloco curdo com vistas a uma maioria. A intenção foi manifestada claramente ontem por Abdul Al-Hakim, que encabeçou a lista da AIU como líder do Conselho Supremo da Revolução Islâmica. Outra força eleitoral importante, a do premiê Ilyad Allawi, um xiita leigo e principal dirigente do Acordo Nacional Iraquiano, caminha no mesmo rumo. Allawi propôs no dia seguinte ao pleito a formação de um governo de união nacional, que contemple todos os grupos étnicos e religiosos. Há praticamente um consenso entre o governo americano e os principais grupos xiitas de que o risco crucial para a reconstrução do país está na exclusão dos minoritários grupos sunitas, aos quais pertenciam os principais beneficiários do regime sanguinário de Saddam Hussein. Incluir os sunitas de alguma forma na assembléia fez parte tanto da conversa do presidente George Bush com os mandatários iraquianos logo após as eleições, como dos discursos atuais dos líderes xiitas. "Não queremos que ninguém seja marginalizado", disse Hakim. "Queremos que todos tomem parte na confecção da Constituição e defenderemos os direitos de todas as minorias." Da manobra para incluir representantes dos sunitas, que boicotaram as eleições, na assembléia nacional dependerá boa parte do futuro do Iraque. Um fracasso nessa tentativa representará certamente o recrudescimento da guerra civil e emitirá sinais preocupantes para os governos sunitas que povoam a região, que terão de lidar com a possibilidade de radicalização de um governo basicamente xiita no Iraque. Se a estratégia der certo, o país pode chegar ao fim do ano com um novo governo , tão democrático quanto as condições do Iraque sob ocupação o permitirem.