Título: Juízes ou legisladores?
Autor: Paola , Leonardo
Fonte: Valor Econômico, 19/06/2008, Opinião, p. A18

Sejamos francos: a separação de poderes, um dos pilares do Estado de Direito, nunca valeu grande coisa no Brasil. Artefato estrangeiro, mal digerido e mal assimilado. Primeiro, o Executivo veio ocupando o espaço de um Legislativo inerte, paralisado por sucessivos escândalos, incapaz de processar e dar solução a demandas sociais e ao mesmo tempo refém de interesses especiais.

Agora, o Judiciário segue a mesma trilha. Tivemos, em 2007, a polêmica decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em torno da fidelidade partidária. Não que a exigência de fidelidade seja má, bem ao contrário, mas, e esta é a questão, caberia ao Judiciário, sem expressa previsão legal, estabelecer a sanção de perda do cargo para o infiel, e, pior, com base em critérios vagos e frouxos, os quais, na prática, lhe outorgam um arbítrio que faz recordar a "degola" da República Velha? Mais recentemente, o presidente do STF, que aliás é a maior autoridade doutrinária brasileira em matéria de controle da constitucionalidade, vem afirmar que a Corte é a Casa do Povo e que cabe a ela suprir as deficiências do Legislativo (Valor, 09/06/08). Isso na esteira do caso das células-tronco, em que, por muito pouco (6x5), o próprio STF não fez "emendas" e "melhorias" à lei que autoriza as pesquisas.

O Judiciário vem legislando, sim, ainda que raramente o reconheça. A retórica das Cortes dissimula esse fato com a invocação de princípios, ideais e valores inscritos na Constituição ou no "espírito" jurídico da atualidade. Mas o preenchimento de conteúdo desses princípios, ideais e valores e a extração de suas conseqüências e efeitos - o que, no fundo, equivale à criação de regras jurídicas -, é, amiúde, pura construção judicial. Aliás, em outra entrevista ao Valor (18/10/07), o ministro Gilmar Ferreira Mendes reconheceu a atuação regulatória do STF nas decisões que denominou, eufemisticamente, de "perfil aditivo".

As razões para que isso esteja acontecendo e ganhando maior dimensão são múltiplas e não podem ser reduzidas a um simples voluntarismo dos juízes (ainda que este também ocorra, em maior ou menor medida). Há o desencanto com o velho positivismo, com a idéia de que o juiz é autômato jurídico, a mera boca que pronuncia as palavras da lei - mas tampouco é o oráculo da Justiça. Há a própria Constituição de 1988, abundante não apenas em regras, mas também em princípios e em garantias para torná-los efetivos. Há a legítima aspiração por maior justiça social, pela redução das desigualdades extremas, miasma que envenena a sociedade brasileira desde seu nascedouro e que tolhe suas potencialidades. Mas há, sobretudo, a desfuncionalidade do Poder Legislativo, seu desprestígio e inoperância, que só fazem crescer. Lutas partidárias, CPIs intermináveis e sucessivas, escândalos, tudo isso e muito mais tem contribuído para a paralisia legiferante do Congresso. Ora, o vácuo funcional deixado por um Poder é ocupado pelos demais: fraqueza de uns, força de outros.

-------------------------------------------------------------------------------- O ativismo judicial quer-se formulador de políticas públicas, mas desprovido da legitimidade outorgada apenas pelo voto popular --------------------------------------------------------------------------------

O juízo de valor sobre esse avanço do Judiciário é, e não poderia deixar de ser, ambivalente. De um lado, seria um retrocesso histórico-involutivo apregoar-se a volta ao positivismo modelo século XIX. A Carta de 1988 atribuiu direitos sociais aos cidadãos e, correlatamente, impôs deveres ao Estado, que podem e devem ser implementados pelo Judiciário quando os demais Poderes se omitem. É o caso, por exemplo, do direito à saúde, efetivado pelos Tribunais mediante ordens para fornecimento de remédios e adoção de procedimentos clínicos. Também nesse sentido, a revitalização do mandado de injunção pelo STF deve ser saudada. Porém, de outro, tomando gosto pela coisa, multiplicam-se os magistrados "decisionistas", "justiceiros", "engajados", "modernos", que desprezam os textos legais, os contratos e a própria jurisprudência, para, no lugar deles, impor seu "sentimento do justo" (o único "critério" ao qual se sentem efetivamente amarrados). E, sob os holofotes da imprensa, muitos tornam-se "celebridades", prontos a dar sugestões sobre qualquer assunto e a antecipar seu posicionamento acerca de matérias que possivelmente irão julgar no futuro.

O ativismo judicial, outro nome para esse fenômeno, quer-se formulador de políticas públicas, mas desprovido não só da legitimidade para tanto, como também dos instrumentos necessários. A legitimidade fundamental em uma sociedade democrática é a outorgada pelo voto popular. Não se pode admitir que essa legitimidade seja posta em segundo plano com base em idéias importadas e fora do lugar do tipo "representação argumentativa" ou "legitimidade performática". Aliás, não deixa de ser irônico que o próprio STF - com toda razão - tenha começado a restringir o abuso na edição de Medidas Provisórias, justamente por ver nisso uma usurpação de poderes legislativos pelo Executivo, mas, ele próprio, STF, venha fazendo o mesmo, com outros meios.

Haveria remédios jurídicos efetivos contra os excessos? Para as decisões das instâncias inferiores e intermediárias, existe o sistema de recursos, que propicia o controle de sua correção pelos Tribunais Superiores. Que fazer, porém, se as decisões partem do STF? Serão os ministros dessa Corte os reis-filósofos sonhados por Platão, aqueles entre os mortais a quem foi dado ver o mundo das idéias? Há quem sugira um novo mecanismo de controle para as decisões que extrapolem a competência do STF, invadindo o campo legislativo (Wanderley Guilherme dos Santos, Valor, 30/11/07). Mas e quem controlaria o novo controlador? Se os ministros do STF não respondem perante ninguém - eis a dura verdade - restam a autocontenção e a crítica contundente da sociedade como os únicos remédios aos excessos.

E, por fim, um conselho aos magistrados decisionistas: não se escondam sob a toga, façam jogo político aberto e limpo, ou seja, entrem claramente na arena política, por meio de seu veículo régio, que são as eleições. Nessa linha, exemplo a ser seguido é o do ex-juiz federal e hoje deputado federal Flávio Dino. Enfim, se querem ter a desenvoltura de políticos, abandonem a blindagem judicial.

Leonardo de Paola é advogado, doutor em Direito pela UFPR e professor da Estação-IBMEC.