Título: Normas contábeis e propriedade intelectual
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 19/06/2008, Legislação, p. E2

A proteção à propriedade intelectual teve início quando, em 1709, foi editado, na Inglaterra, o "Statute of Anne", que tinha como principal objetivo proteger e incentivar os autores e inventores a criar e inovar suas técnicas e conhecimentos, impulsionando, assim, o desenvolvimento industrial e tecnológico. Alguns séculos depois, a propriedade intelectual passou a ocupar, cada vez mais, um lugar de destaque nas empresas, tornando-se ao longo do tempo um ativo de alto valor e, em muitas vezes, essencial para a continuidade e prosperidade dos negócios. Isso pode ser visto com a criação e avanço da legislação de proteção à propriedade intelectual, tamanha sua relevância e necessidade de regulamentação.

Foi o caso da constituição do "Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights" - o Acordo Trips - em 1994, no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), que determina os requisitos mínimos de proteção dos titulares de direitos de propriedade intelectual nos países signatários. Posteriormente, constituiu-se a World Intellectual Property Organization (Wipo), que tem se incumbido de harmonizar as regras internacionais de proteção aos direitos de propriedade intelectual, bem como de solucionar controvérsias a respeito do comércio internacional envolvendo direitos de propriedade intelectual.

Em vista do crescente investimento empresarial em propriedade intelectual, o Brasil modernizou seu sistema de proteção de direitos de propriedade intelectual com a criação, em 1996, da Lei nº 9.279 - a Lei da Propriedade Industrial -, em consonância com o Acordo Trips e representando uma das legislações mais avançadas no mundo sobre propriedade intelectual. Nesse mesmo sentido de modernização da legislação interna, a Lei nº 11.638, de 28 de dezembro de 2007, trouxe uma série de modificações e inovações à Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976 - a Lei das Sociedades por Ações ou Lei das S.A. - no que diz respeito à elaboração e divulgação de demonstrações financeiras.

A Lei nº 11.638 tem como um de seus principais objetivos a modernização e harmonização da legislação societária brasileira com os melhores princípios e práticas contábeis internacionais, adequando o Brasil aos sistemas contábeis mais utilizados e aceitos no exterior. Um dos avanços da Lei nº 11.638 foi alterar as regras aplicáveis ao tratamento de ativos intangíveis - como os direitos de propriedade intelectual - no balanço das sociedades.

Anteriormente à edição da Lei nº 11.638, o artigo 179, inciso IV da Lei das S.A. definia ativo imobilizado como "direitos que tenham por objeto bens destinados à manutenção das atividades da companhia e da empresa, ou exercidos com essa finalidade, inclusive os de propriedade industrial ou comercial". Embora existisse a previsão de contabilização dos ativos de propriedade industrial ou comercial, poucos direitos eram de fato "ativáveis" e não havia na legislação a definição de um parâmetro específico e claro para realizar a completa avaliação e registro de ativos intangíveis. Na prática, bens como marcas, patentes e direitos autorais eram registrados apenas pelo custo incorrido para sua obtenção - e somente pelas parcelas mensuráveis de forma direta e objetiva, capazes de gerar benefícios incrementais no futuro.

É natural que possa haver a reclassificação de certos ativos hoje registrados em outros grupos

Agora, a Lei nº 11.638 mudou significativamente o tratamento dos ativos intangíveis no balanço das sociedades. De fato, criou-se um grupo contábil específico para tais bens - no artigo 179, inciso VI da Lei nº 11.638 -, que são definidos como os direitos que tenham por objeto bens incorpóreos destinados à manutenção da sociedade ou exercidos com essa finalidade, inclusive o fundo de comércio adquirido. A criação desse grupo contábil específico contribuiu para uma melhor identificação e individualização da propriedade intelectual das empresas no contexto do seu efetivo patrimônio.

A Lei nº 11.638 também prevê a inclusão, nos balanços, de um novo critério de avaliação dos bens. Dessa forma, os direitos classificados como intangíveis serão avaliados pelo custo incorrido na aquisição, deduzido o saldo da respectiva conta de amortização, o que permitirá uma determinação mais clara e exata do real valor dos bens intangíveis da empresa. Não obstante tal disposição, o artigo 183, parágrafo 3º da Lei das S.A., alterado pela Lei nº 11.638, também atribui à sociedade o dever de efetuar, periodicamente, a análise sobre a recuperação dos valores registrados no grupo intangível com o objetivo de assegurar que sejam: 1) registradas as perdas de valor do capital aplicado, quando houver decisão de interromper os empreendimentos ou atividades a que tais ativos se destinavam, ou quando comprovado que não poderão produzir resultados suficientes para a recuperação desse valor; ou 2) revisados e ajustados os critérios utilizados para a determinação da vida útil econômica estimada de tais bens do grupo intangível e para o cálculo da respectiva depreciação, exaustão e amortização.

Com a criação de um grupo específico para os ativos intangíveis no balanço das sociedades, é natural que possa haver a reclassificação de certos ativos das sociedades hoje registrados em outros grupos e que passariam a ser classificados como intangíveis. Como conseqüência, tal reclassificação deverá identificar de forma mais precisa a relevância da propriedade intelectual no balanço das sociedades.

Finalmente, vale mencionar que recentemente a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) regulamentou a Lei nº 11.638 em diversas questões e disponibilizou em seu site o Edital de Audiência Pública SNC nº 03, de 2008. O referido edital tem como propósito aprovar o Pronunciamento Técnico nº 04 do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), que visa adequar a regulamentação brasileira às normas do International Accounting Standards Board (Iasb) sobre bens intangíveis. Com o fim do prazo para envio de sugestões e comentários ao edital, aguarda-se o pronunciamento definitivo da CVM com relação à nova regulamentação contábil sobre ativos intangíveis.

De qualquer forma, espera-se que a regulamentação do assunto pela CVM esteja em harmonia com o desenvolvimento da proteção dos direitos de propriedade intelectual das empresas, a fim de que não se criem barreiras ou dificuldades desnecessárias para o incremento das atividades e dos investimentos empresariais no desenvolvimento de novas tecnologias.

Guilherme Leite e André Zonaro Giacchetta são advogados e sócios das áreas empresarial e contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados.

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