Título: Violência cimenta religião e voto no morro
Autor: Grabois,Ana Paula
Fonte: Valor Econômico, 23/06/2008, Política, p. A8

"Os incomodados que se mudem. Essa é a primeira favela do Rio, a gente não precisa disso", dizia na tarde da sexta-feira passada uma senhora a amigos em um dos bares da praça Américo Brum, observada por um grupo de soldados visivelmente aborrecidos.

Foi naquela mesma praça, no alto do Morro da Providência, que onze militares do Exército prenderam na manhã do sábado retrasado cinco jovens que voltavam de um baile funk e acabaram entregando os rapazes a traficantes do Morro da Mineira, dominado por uma facção rival. Três morreram após torturas.

Sob clima de extrema tensão, cerca de 30 soldados constrangidos e armados com fuzis faziam na sexta-feira a segurança da praça à espera do ministro da Secretaria de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, que visitaria as famílias dos rapazes no morro que deu origem à palavra favela. Antes de ser Providência, era conhecido como Morro da Favela, em alusão a uma planta do sertão baiano trazida por ex-combatentes da Guerra de Canudos que, em 1897, fundaram a área junto com ex-escravos. A presença dos 200 militares amedronta e traz à tona uma forte rejeição por parte de quem vive ali.

Um morador relata que teve sua casa arrombada naquela tarde porque apareceu em um jornal falando sobre os conflitos com os militares na favela. Conta que se sentiu ameaçado ao ver quatro soldados saindo de sua casa. "As famílias estão sendo ameaçadas e parte do Exército também se sente ameaçada por permanecer aqui", diz o advogado das famílias das vítimas, João Tancredo.

O Exército está no Morro da Providência desde dezembro para executar o projeto de reformas de casas Cimento Social, de autoria do bispo da Igreja Universal e senador Marcelo Crivella, pré-candidato a prefeito da pelo PRB, partido do vice-presidente José Alencar. O Exército fez a licitação para as obras e a empreiteira escolhida contratou mão-de-obra local, o que constitui a parte social do projeto. O Cimento Social previa o uso dos militares na segurança das obras, mas, na prática, o Exército acabou por fazer a segurança do local, com revistas freqüentes aos moradores. "Há uma violência sistemática aqui, com tapas, espancamento", afirmou João Tancredo.

Em um pequeno armazém na praça Américo Brum, um jovem policial militar que ajudava na segurança da comitiva de Vannuchi falava das dificuldades enfrentadas no combate ao tráfico de drogas e pensava em abandonar a corporação. "Não agüento mais isso. Nessa semana, um colega morreu com trinta tiros no corpo. O caixão teve que ficar fechado no velório. Ninguém falou sobre direitos humanos", afirmou. "A gente entra na favela em um grupo de dez, doze policiais, mas somos recebidos com 2000 fuzis", disse.

Boa parte dos soldados do Exército que estão na Providência vivem em outros morros da cidade, muitos deles controlados por facções rivais, o que acaba por fomentar um ambiente beligerante, contou outra moradora. Entre os cem trabalhadores do Cimento Social, muitos saíram do tráfico em busca do trabalho assalariado de R$ 655 para servente a R$ 1.200 para pedreiro.

Para a socióloga Maria Alice Rezende de Carvalho, do Iuperj e da PUC-Rio, a presença do Exército é fato sem explicações. "No Rio, todos os projetos de urbanização e melhoria das condições de vida dos moradores de favela foram realizados sem a polícia ou as Forças Armadas", afirmou. No programa de urbanização favela-bairro, ressalta, eram meses de permanência das frentes de trabalho nas favelas sem registro de incidentes. "Como as obras da Providência têm prazos curtos, pois atendem a um calendário eleitoral, a intervenção ali se assemelha a uma invasão, seguida de ocupação, e não a uma política de democratização de benefícios e serviços", disse.

O assassinato dos jovens atraiu uma horda de políticos e virou alvo de lideranças religiosas. Sobre o vidro de um santuário de São Jorge no meio da praça Américo Brum, um cartaz anunciava culto do pastor da Assembléia de Deus Marcos Silva, conhecido por intervir em "julgamentos" do tráfico. Em um poste próximo, anunciava-se outro culto da Assembléia de Deus em louvor às vítimas. A vereadora Lilian Sá, evangélica, tornou-se porta-voz das mães dos jovens mortos. Do PR, partido próximo de Crivella, ela nega qualquer interlocução com o senador-candidato. "Somos coligados, mas fui chamada pela comunidade no dia em que houve o confronto com o Exército", afirmou. Na sexta, tentou sem sucesso organizar passeata em protesto ao crime.

As obras do projeto Cimento Social estão ainda no começo - das 782 casas previstas, 60 foram reformadas e 20 estão em obras. A presidente da associação de moradores, Vera Melo, diz que as obras se limitam às casas mais expostas aos olhos de quem passa pelo lado de fora da favela. Na área mais pobre do morro, chamada de Pedra Lisa, o projeto não chegou. "A obra não apareceria lá. Essa é uma obra eleitoral", diz Vera. Ela conta que no início da implementação do projeto, o senador tentou fazer cadastro por meio da Igreja Universal. O secretário municipal de Assistência Social, Marcelo Garcia, afirma que a prefeitura desistiu do convênio porque o senador não quis selecionar os beneficiários pelo cadastro único do governo federal. A prefeitura ficaria com a responsabilidade de gerir as obras, pagas pelo Ministério das Cidades. Como não conseguiu fechar com a prefeitura, Crivella enquadrou o projeto como obra de emergência sob responsabilidade do Exército. Os recursos, R$ 16,6 milhões, foram transferidos pelo Ministério das Cidades ao da Defesa, como emenda ao Orçamento.

O número de militares na Providência foi reduzido para 60 em cumprimento da decisão do Tribunal Regional Federal (TRF) que determinou a manutenção do Exército apenas na segurança das obras. Os militares, entretanto, ainda ocupavam outras partes da favela. A decisão judicial vale até quinta-feira, quando o governo federal terá que apresentar solução definitiva. A Advocacia Geral da União havia recorrido ao TRF da decisão da Justiça Federal em substituir o Exército pela Força Nacional de Segurança.

Publicidade