Título: Mercado alimenta produção
Autor: Torres , Fernando
Fonte: Valor Econômico, 26/06/2008, EU & Investimentos, p. D1

Depois de vários avanços regulatórios, mais de uma década de inflação relativamente controlada e de um período prolongado de taxas de juros mais baixas, o mercado de capitais parece ter se tornado, enfim, uma importante fonte de financiamento para o crescimento das empresas e para o aumento dos investimentos produtivos. De acordo com estudo feito pelo Valor, a relação entre as captações de recursos das companhias pelos diversos instrumentos disponíveis no mercado e os investimentos produtivos das empresas atingiu 16,41% no ano passado, a maior marca já registrada pelo menos desde 1980, quando começou o levantamento.

Trata-se de um patamar superior ao observado na relação entre os desembolsos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e os investimentos produtivos - chamados, no jargão econômico, de Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF) -, que foi de 14,44% no ano passado.

O estudo mostra também que houve grande evolução na comparação com os anos anteriores. No período entre 1980 e 1989, a relação média das emissões primárias de valores mobiliários e os investimentos das empresas foi de 2,59%, tendo subido para 7,02% nos dez anos seguintes. No intervalo entre 2000 e 2004, a taxa média ficou em 6,89%, saltando para 13,62% no triênio entre 2005 e 2007.

Essa medida usada para medir a relevância do mercado de capitais como fonte de financiamento dos investimentos produtivos foi apresentada inicialmente por José Roberto Mendonça de Barros e José Alexandre Scheinkman no trabalho "Desafios e oportunidades para o mercado de capitais brasileiro", publicado em 2000. O estudo foi uma das principais referências teóricas para a criação do Novo Mercado da Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa).

No trabalho original, os autores usaram apenas as emissões primárias de ações e debêntures. Para chegar ao resultado final, o Valor atualizou os números até 2007 e acrescentou os dados sobre emissões de notas promissórias e de operações de securitização - os Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDCs) e os Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRIs). Na época do estudo, alguns desses instrumentos sequer existiam.

O presidente do Ibmec São Paulo Claudio Haddad avalia que o mercado de capitais tem uma faceta importante, que é dar uma fisionomia nova para o capitalismo brasileiro, ao trazer empresas de novos setores, algumas delas até embrionárias, o que é fundamental para estimular o empreendedorismo. Para ele, agora que o mercado se firmou como opção de financiamento para as empresas, o BNDES deveria se concentrar em projetos que sejam bons sob o ponto de vista social, mas sem rentabilidade privada suficiente para que o mercado tenha interesse. "No passado, não havia outro jeito, o BNDES era o principal meio de financiamento de projetos de longo prazo, mas agora o cenário é outro. Então, para que subsidiar grandes empresas que não necessitam desses subsídios?", diz o especialista.

Haddad alerta, no entanto, que nem todo o volume captado pelas companhias nas emissões primárias vai necessariamente para investimentos que são contabilizados pela metodologia da FBCF. "Essa medida é interessante para dar uma dimensão do crescimento das fontes de financiamento de longo prazo, mas nem tudo se reflete em formação bruta de capital fixo", pondera. "Isso vale tanto para os recursos captados via mercado quanto para os que são obtidos por meio do BNDES ou dos lucros próprios gerados pela companhia, que são as três maneiras de financiar projetos", completa Haddad. Para ele, porém, o importante é que o mercado de capitais tenha se firmado como uma fonte para esses investimentos.

Como a FBCF só capta os investimentos fixos, não entram na conta aquisições e investimentos em intangíveis, como pessoas ou tecnologia. Basicamente, o indicador capta a expansão da capacidade instalada.

É fato também que as companhias abertas têm um peso cada vez maior no investimento produtivo total do país, tomando lugar do governo e de empresas fechadas no total de novos aportes realizados. Isso pode ser verificado pela relação entre o aumento do ativo imobilizado (bens como imóveis, máquinas e equipamentos) das empresas de capital aberto e a FBCF, índice calculado em dissertação de mestrado em administração pela pesquisadora Maria Laura do Carmo Muanis, pela PUC-Rio.

Ao analisar o período de 1987 a 2002, com os dados de todas as companhias abertas registradas em cada ano, Maria Laura verificou um crescimento consistente dessa participação, que saltou de 6,6% no ano inicial para 25,2% no último ano da pesquisa.

Com base no método deste estudo, o Valor calculou essa relação para o período de 2003 a 2007 usando como universo de pesquisa as cem empresas abertas com maior ativo imobilizado ao final de 2007 e encontrou a mesma tendência de aumento, embora com índices diferentes. A fonte de informação utilizada foram as Demonstrações de Origens e Aplicações de Recursos divulgadas pelas empresas na Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Com este cálculo, se chegou ao índice de 27,33% em 2007, ante uma relação de 21,97% em 2006, por exemplo. Em números absolutos (sem correção), o total do aumento do imobilizado destas cem empresas saiu de R$ 51,14 bilhões em 2003, para R$ 122,84 bilhões no ano passado, uma alta de 140%. Apenas entre 2006 e 2007, a expansão foi de 45%.

Segundo Maria Laura, os dados ligeiramente distintos entre os dois levantamentos podem ser explicados pelo número menor de empresas da amostra usada pelo Valor e também pela mudança da metodologia do cálculo do produto interno bruto brasileiro (PIB), já que a pesquisa dela levou em conta os números antigos.

Ao comentar os dados atualizados do seu estudo publicado em 2000, Mendonça de Barros disse que faz todo o sentido incluir na conta também as operações de securitização, já que são instrumentos "complementares" de financiamento. Ao olhar para trás e ver o desempenho do mercado nos últimos anos, a análise do economista é positiva. "Demorou mais do que a gente esperava para deslanchar, o que não é raro quando se tem inovações grandes como o Novo Mercado. Mas, depois que começou, foi mais rápido do que nós imaginávamos", afirma.

Para Mendonça de Barros, as empresas brasileiras se deram conta de que para crescer tinham que reforçar o capital próprio, em especial para o processo de internacionalização iniciado no princípio do século. "Para ter musculatura precisa ter 'equity' [capital próprio]. Não se cresce só com dívida", afirma, lembrando que os juros reais ainda elevados do Brasil desestimulam o endividamento.

Ainda que o desempenho do mercado este ano não repita a exuberância vista em 2007, Mendonça de Barros avalia que o financiamento das empresas brasileiras via mercado de capitais "é um fenômeno que veio para ficar". Para ele, uma prova de que as coisas mudaram foi que, ao menor sinal de abrandamento da crise nos Estados Unidos, nos últimos dois meses, as emissões foram retomadas.

Em meados deste mês, por exemplo, a empresa de petróleo e gás OGX, do empresário Eike Batista, concluiu uma emissão primária de ações que deve se configurar como a maior oferta da história do mercado brasileiro, levantando R$ 6,7 bilhões. Mais ou menos na mesma época, o mercado de capitais registrou outra notícia importante: a Vale do Rio Doce anunciou uma grande captação por meio de emissão de ações, que está estimada em 15 bilhões. (*do Valor Online)