Título: O retrovisor, o pãozinho e a política monetária
Autor: Barenboim , Igor
Fonte: Valor Econômico, 30/06/2008, Opinião, p. A10

Nunca antes na história deste país viu-se um crescimento econômico baseado na expansão do crédito como o atual. Carros são parcelados em mais de sete anos, outros bens assistiram alongamento de prazo da mesma sorte, empresas de pequeno e médio porte têm maior acesso ao crédito, alavancando-se em recebíveis de cartões de crédito. Portanto, as finanças de mais e mais brasileiros são afetadas diretamente pela taxa de juros. Essa maior participação do crédito na economia brasileira tem implicações importantes para a condução de política monetária.

Nos últimos quatro anos, a participação do crédito na economia brasileira cresceu 10 pontos percentuais em relação ao PIB. Hoje o crédito representa 37% da economia brasileira, uma taxa relativamente alta quando comparada aos nossos maiores vizinhos da região. Este número para a Argentina está abaixo de 10% e, no México, em torno de 20%. O fenômeno da expansão do endividamento de empresas e pessoas no Brasil é saudável porque permite trazer riqueza futura para o presente, possibilitando uma taxa mais alta de investimento hoje, a suavização inter-temporal do consumo e, portanto, uma taxa mais elevada e talvez menos volátil de crescimento.

Uma parcela maior da população exposta a taxa de juros significa que ações do Banco Central com respeito à determinação da política monetária possuem impacto maior sobre as finanças da população. Em outras palavras, aumentos na taxa de juros que outrora pouco impacto teriam na economia passam a ser mais relevantes. Uma metáfora ilustra o ponto. Aumentar os juros em 50 pbs no Brasil há 10 anos era como aumentar o preço do pãozinho na única padaria de uma cidade do interior em R$ 0,50. Aumentava os lucros em termos relativos, mas em termos absolutos não fazia muita diferença. Diferença havia quando se aumentava em R$ 5 (500 pbs). Hoje política monetária é como aumentar o preço do pãozinho em uma rede de 37 padarias no interior. Qualquer R$ 0,50 faz muita diferença.

Nós e nossos colegas de profissão que suaram a camisa para encontrar algum impacto da taxa de juros no hiato do produto, quando começou o regime de metas de inflação, sabemos que a tarefa já não é mais tão árdua. Mas sabemos também que nossos estimadores estão subestimando a relação real entre juros e PIB. Isso se dá porque calculamos nosso estimador com dados históricos. Ou seja, os modelos estimam a média do impacto do preço do pãozinho sobre o lucro fazendo uma espécie de média do aumento de lucro da padaria do interior e da rede de padarias.

Nossos estimadores sofrem de uma doença mais grave ainda. Desde a implementação do Plano Real, houve apenas um ciclo de aperto monetário que se deveu ao sobreaquecimento da demanda. Os outros aumentos de juros se deram por conta do ajuste do Balanço de Pagamentos. Portanto, nossas estimativas (regressões) são feitas, de fato, com uma só observação. É claro que uma observação é infinitamente melhor do que nenhuma. No entanto, cautela é necessária porque mais mal pode ser feito se acreditarmos que nosso estimador é verdadeiro.

O impacto da taxa de juros sobre a atividade econômica aumentou devido à expansão do crédito da última década

Um fator complicador da equação que determina a política monetária ótima é a defasagem do impacto da taxa de juros na atividade econômica. Maiores juros hoje implicam menor atividade econômica em 6 ou 12 meses. Isso se dá porque operações de crédito e de compra e venda que hoje ocorrem foram acertadas no passado, além de outras razões. Uma metáfora que ilustra essa peculiaridade é: conduzir política monetária é como dirigir um carro olhando apenas no retrovisor. Há que se imaginar a curva por vir tendo em vista o desenho da estrada que já passou. No Brasil de hoje, fazer política monetária é como dirigir um carro olhando apenas no retrovisor embaçado, pois nossos estimadores não são bons em previsões nem mesmo de verdades do passado.

Em caso de desconhecimento dos parâmetros que determinam o impacto da taxa de juros sobre a atividade econômica, e em face a longa e incerta defasagem deste impacto, o consenso da literatura de política monetária ótima é de que se proceda de forma gradual. Há que se responder ao repique inflacionário que vivemos hoje, mas uma sobre-reação rápida do BC pode prejudicar desnecessariamente o crescimento e aumentar a volatilidade do ciclo econômico.

Devemos manter em mente que, em nosso único exemplo de contração de demanda via aumento de taxa de juros, a economia reagiu de maneira significativa. Em 2004 foi iniciado um ciclo de altas de juros que resultou em uma alta total de 375 pbs e, em 2005, a economia cresceu 3,1%, vindo de 5,7% em 2004. Política monetária funciona! Abusando um pouco da nossa única observação, não podemos esquecer que naquela época a economia mundial ainda estava em pleno vapor e, apesar da desaceleração da demanda doméstica, o setor externo manteve a economia nos seus 3,1%; hoje, uma desaceleração brusca da demanda doméstica faria toda a economia desacelerar. Temos que tomar cuidado para não batermos forte demais no único pilar de sustentação: não queremos que este desabe, mas sim que diminua a sua pressão sobre a economia.

Nós sabemos também que não há escolha possível entre mais crescimento e mais inflação, mas há uma escolha a se fazer entre maior volatilidade do crescimento, ou maior volatilidade da inflação. Conduzir a política monetária de forma gradual num momento de incerteza com respeito ao impacto da taxa de juros sobre o crescimento e de suas defasagens significa privilegiar a redução da volatilidade da taxa de crescimento, a despeito da volatilidade da inflação. Tendo em vista a natureza da aceleração inflacionária, nos parece mais interessante para a perpetuação do crescimento sustentável agir desta forma.

Em resumo, em face a expansão de crédito que ocorreu na última década no Brasil, o impacto da taxa de juros sobre a atividade econômica aumentou. No entanto, nós não sabemos ao certo como esse impacto cresceu. Nesta conjuntura, e tendo em vista a composição da taxa de inflação, a literatura econômica recomenda uma reação gradual do Banco Central frente ao recente repique inflacionário. Aumentar os juros é preciso. Mas vamos devagar.