Título: Lula quer evitar que ricos ponham a culpa da inflação nos pobres
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Fonte: Valor Econômico, 02/07/2008, Brasil, p. A6
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva pediu aos governos sul-americanos, ontem, na reunião de cúpula do Mercosul, uma estratégia comum para evitar que os países emergentes sejam apontados pelos governos dos países ricos como os culpados pela crise de alimentos e pela alta de preços internacional de produtos agrícolas e combustíveis. Para avaliar as medidas adotadas pelo governo contra a alta no Brasil, a caminho da Argentina, convocou para amanhã o grupo de economistas que formou para discutir a estratégia anti-inflacionária.
O grupo é formado pelo ex-deputado Delfim Netto, Luiz Gonzaga Belluzzo, o senador Aloizio Mercadante, o ministro da Fazenda, Guido Mantega e o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles. O governo, segundo um ministro, acredita que os programas de apoio à agricultura empresarial e familiar a serem anunciados hoje poderão frear as tendência de recrudescimento da inflação. Embora o governo descarte acordos de congelamento de preços, como os ensaiados no México e Uruguai, Lula afirmou, ontem, porém, que pretende fazer "acompanhamento dos preços industriais que porventura estiverem exorbitando da remarcação dos preços".
"Se tem alguém especulando, com a expectativa inflacionária não passa nem perto do governo federal porque faremos o necessário para reduzir e não permitir que ela volte", declarou Lula.
Falando a seis chefes de Estado sul-americanos na reunião do Mercosul, Lula acusou os países ricos de distorcer os relatos sobre a crise para atribuir aos países emergentes a responsabilidade pelos desequilíbrios na economia mundial. Lembrou que é conferido pouco destaque à crise imobiliária nos Estados Unidos, que teria afetado o sistema financeiro europeu e obrigado os Bancos Centrais da Europa a socorrerem os bancos privados com "400 bilhões de euros". Também , criticou o Banco Central dos Estados Unidos por, "estranhamente", ter contrariado a expectativa de alta dos juros americanos, na tentativa de melhorar os resultados do comércio exterior dos EUA e as contas fiscais do país.
Para Lula, os problemas dos países desenvolvidos são minimzados em organismos multilaterais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) porque há uma tentativa de atribuir aos países emergentes produtores de alimentos e combustíveis a culpa pela crise de preços, o que exige uma resposta dos governos da região. "Temos que tomar todo o cuidado para que essa crise, que estava distante oito mil quilômetros, não nos ataque."
"Se não começarmos a discutir essas coisas enquanto temos tempo, eles vão jogar outra vez - por todos os discursos que estamos vendo - a crise da inflação e a crise dos alimentos nas custas dos países pobres", discursou Lula. "Logo, logo, haverá muitos países recebendo missão do FMI dizendo que têm que fazer um ajuste fiscal pesado, que precisam fazer contenção de despesas, e nós já conhecemos o final dessa história."
"Quando os bancos europeus perdem 400 bilhões de euros na especulação e não dizem nada e toda vez que a gente pergunta pra um ministro e nos respondem que o caso não está apurado é sinal de que algo estranho se passa", comentou o presidente. "Se fosse um país da América do Sul, já teria um monte de organismos com estudos prontos e dando opinião."
A crise de alimentos foi um dos assuntos discutidos pelos presidentes dos sócios do Mercosul (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai), da Venezuela (em processo de adesão ao bloco) e dos países associados Bolívia e Chile, reunidos na cidade de Tucumán, no Norte argentino. Os presidentes sul-americanos que participaram da Cúpula admitiram a influência do aumento de consumo sobre os preços internacionais, mas culparam a especulação pelos níveis alcançados nos mercados de bens agrícolas e combustíveis.
"A economia de cassino, especulativa, que estava circunscrita ao mercado financeiro e de crédito se transferiu ao mercado dos alimentos", disse a presidente argentina, Cristina Kirchner. "O mercado futuro de petróleo tem o mesmo estoque de barris que consome a China", concordou Lula. "Não temos apenas uma China, temos duas: uma que utiliza o petróleo e outra que especula com a mesma quantidade da China."
Lula lembrou que parte da responsabilidade pela crise na produção de alimentos cabe aos subsídios agrícolas dos países ricos, que distorcem o comércio, e insistiu na necessidade de um bom acordo de liberalização e fim dos subsídios, na chamada Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC). O tema provoca fortes divergências entre Brasil e Argentina, e, em encontro no começo da manhã, Lula e Cristina haviam decidido realizar uma nova reunião só para acertar uma estratégia conjunta para a rodada.
Os diplomatas argentinos insistiam ontem que não aceitam a proposta em discussão na OMC para redução de tarifas de importação industriais em países emergentes, embora o Brasil veja nela uma boa base de negociação. Frente à resistência argentina, e sem a presença dos diplomatas mais envolvidos na negociação, o governo brasileiro preferiu adiar a reunião para 4 de agosto, quando Lula visita a Buenos Aires com uma missão de empresários.
Lula acabou realizando outra entrevista com Cristina Kirchner, acompanhado do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, a pedido do venezuelano, que sugeriu aos dois maiores sócios do Mercosul a "reativação do eixo Brasília-Buenos Aires-Caracas" para projetos trilaterais de fornecimento mútuo de alimentos e energia. "Tanto poderemos resolver o problema alimentar da Venezuela quanto a Venezuela pode resolver o problema de energia da região", comentou Lula, após o encontro, sem dar detalhes.
Lula, que assumiu durante a reunião a presidência temporária do Mercosul, rompeu o protocolo e fez dois discursos, um mais protocolar, de balanço do Mercosul ao fim do encontro, e outro, enfático, de condenação ao papel dos países ricos na crise financeira e alimentar nos mercados mundiais. "Está treinando para a reunião do G-8", explicou o assessor internacional de Lula, Marco Aurélio Garcia. Lula participará da reunião do G-8, o grupo que reúne a Rússia e os sete países mais ricos do mundo, na próxima semana, no Japão.
O ministro da Fazenda, Guido Mantega, apresentou ontem ao Conselho Político do governo todas as medidas já tomadas pela equipe econômica para conter a alta da inflação e apontou como necessárias a aprovação da medida provisória da política industrial, que está no Congresso, e aumento na taxa de investimentos, sobretudo do PAC, para melhorar a oferta de serviços. De acordo com relato de parlamentares presentes, Mantega lembrou que o governo fará cortes nas despesas de custeio da máquina pública, preservando, contudo, recursos para o PAC, o Bolsa-Família, além das áreas de educação e saúde. (Colaborou Paulo de Tarso Lyra, de Brasília)