Título: Uma fidelidade partidária para políticos pouco infiéis
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 04/07/2008, Opinião, p. A12

Quando o assunto é legislação eleitoral, é verdadeira a máxima de que a emenda sai sempre pior do que o soneto. O Congresso e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) vêm mantendo uma queda-de-braço em torno de regulamentações dos pleitos. Nesse movimento, o tribunal tem sistematicamente extrapolado de suas funções, e legislado, e o Congresso respondido com mudanças na lei que acomodam interesses políticos dos parlamentares. Um comprime, outro dilata as regras eleitorais, de tal forma que o princípio da segurança jurídica nunca vale nesse mercado.

Confirmando a regra, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara aprovou, na quarta-feira, um projeto de lei complementar que regulamenta a resolução do TSE sobre fidelidade partidária, que em março do ano passado, após revoada dos deputados recém-eleitos para outros partidos, definiu que os mandatos são dos partidos, não dos políticos eleitos, colocando em risco os cargos de cerca de 20 deputados e centenas de prefeitos e vereadores. A votação do projeto, que ainda tem que ser aprovado pelo plenário da Casa e pelo Senado, pode ser considerada uma reação ao TSE, que teria extrapolado a lei eleitoral quando regulamentou o instituto, e portanto legislado, o que não é o seu papel. A CCJ da Câmara, todavia, reafirmou o seu poder de legislar pela metade. Não teve coragem de simplesmente derrubar a fidelidade partidária, pois existe um entendimento relativamente consolidado entre especialistas e mesmo a opinião pública de que o instituto é fundamental para dar consistência aos frouxos partidos políticos brasileiros, mas deu um jeitinho de salvar os seus: abriu uma janela de 30 dias para troca de legendas, que correriam um mês antes do prazo de um ano de filiação partidária exigido por lei. Isto é, o eleito seria obrigado a ficar no partido, mas nem tanto. Poderia mudar de legenda no mês de setembro do ano anterior às eleições.

Como essa "janela" é simplesmente um casuísmo, destinado a acomodar os interesses pessoais dos políticos com os das legendas para as quais foram eleitos, o Projeto de Lei Complementar nº 124, de autoria do deputado Flávio Dino (PCdoB-MA), para se justificar, define uma regra esquisita, segundo a qual o eleito só pode mudar de partido se for disputar, no ano seguinte, eleição na mesma jurisdição. Isto é: se é prefeito ou vereador, só poderia sair de seu partido e ir para outro se for disputar a eleição municipal; se é deputado estadual, federal ou senador, só pleitearia um desses cargos considerados estaduais; e se for presidente ou vice, teria a possibilidade de legenda para disputar a Presidência ou a vice. Não é possível entender por que é importante, para o instituto da fidelidade, alguém que já tenha um mandato ter vetada a possibilidade de disputar cargo de outra jurisdição quando mudar de partido. Segundo o autor da proposta, a exceção à fidelidade se justificaria porque "as trocas legítimas devem ter um espaço". Não diz, todavia, por que algumas mudanças de partido são mais legítimas do que as outras. Há a suposição de que a exceção da exceção vise imobilizar o governador Aécio Neves (PSDB), a quem supostamente interessaria se abrigar no PMDB caso não tenha espaço em seu partido para disputar a Presidência em 2010. Se a intenção da restrição à liberalidade do projeto for essa, o projeto encerra dois casuísmos: acomoda interesses de parlamentares e coíbe os de um único governador.

O Congresso deve resgatar a sua autoridade para legislar sobre matéria partidária e eleitoral, função que sistematicamente lhe vem sendo tomada pelo Judiciário. Mas a função de legislar sobre matérias que encerram os interesses políticos de cada um dos parlamentares deve obedecer, fundamentalmente, à coragem de contrariar interesses, inclusive os seus próprios. Ninguém pode ser mais ou menos contrário à fidelidade eleitoral - ou bem ela é reafirmada em lei complementar ou derrubada. Para definir isso, o Congresso deve debater seriamente o que convém e o que pode induzir o amadurecimento do sistema político brasileiro, sustentado por partidos frágeis e pouco orgânicos. E assumir suas decisões. Legislar só por legislar - e para desautorizar o Judiciário - é um péssimo caminho. Produzir hiatos legislativos apenas incentiva mais ativismo judicial - que, por sua vez, provoca mais reações do Legislativo. E essa roda-viva nunca termina.