Título: A inflação mundial
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 07/07/2008, Opinião, p. A15

A inflação mundial tem-se elevado. De 2002 para cá a inflação média subiu de 3,86% para 4,82%. Os preços internacionais de alimentos, petróleo e metais aumentaram de 2002 para cá, tanto em dólares, quanto em euros. A média dos preços de alimentos elevou-se 107% em dólares. O petróleo passou de U$ 26,17 para US$ 145,29 (petróleo do tipo WTI - preço por barril).

Por que se chegou a esta situação? O que pode ser feito para evitar que isto ocorra novamente? O que deve ser feito agora? Quais os impactos para o Brasil? Pela sua natureza mais volátil, é comum em muitos países raciocinar-se sobre a inflação excluindo preços de alimentos e de combustíveis. É o chamado "núcleo da inflação por exclusão" destes preços. Os EUA são exemplo de país em que a importância deste índice é alta.

Em geral, raciocinar com estes índices de preço por exclusão tem sua utilidade. Com efeito, se o cartel da Opep resolve restringir a oferta (que aumenta o preço do petróleo), tem-se uma elevação da inflação interna dos países que não pode ser combatida pela política monetária. Por mais que os bancos centrais aumentem a taxa de juros, nenhum efeito terá sobre o preço determinado pelo cartel. Da mesma forma, se há uma quebra de safra de um produto agrícola, não só o fenômeno não deve se repetir, como há pouco que possa ser feito pelos bancos centrais. A ação mais comum dos bancos centrais é considerar que elevações de preços de alimentos e combustíveis (e de "commodities" em geral) estejam fora do seu controle direto. Dessa maneira, as políticas monetárias internas são conduzidas de modo a evitar que estes aumentos sejam repassados a outros preços da economia. Isto é, bancos centrais determinam a taxa de juros de modo a evitar os efeitos secundários dos choques de preço de alimentos e combustíveis, mas são tolerantes com o impacto primário dessas elevações na inflação. Há algum tempo, Rodrigo Rocha Azevedo mostrou-me que havia um potencial desestabilizador nesta forma de condução da política monetária.

O argumento é o seguinte. Os bancos centrais do mundo têm como objetivo principal a manutenção da inflação em níveis aceitáveis pelos países (além, é claro, do papel de ser o emprestador de última instância do sistema financeiro). Além disso, os bancos centrais costumam agir de forma independente, isto é, centrados nas inflações de seus próprios países. Imagine, agora, que se torne corrente a adoção de políticas que acomodem choques de preços de alimentos e combustíveis. Numa situação normal, os preços de alimentos sobem por conta de uma quebra de safra, e um aumento do preço do petróleo é causado por uma decisão unilateral (sem razões específicas do ponto de vista de demanda) da Opep.

BCs calibram os juros para evitar os efeitos secundários dos choques de commodities, mas são tolerantes com o impacto primário na inflação

Se este for o caso, então as pressões inflacionárias de alimentos e combustíveis são passageiras, e a condução da política monetária que acomoda os efeitos primários destes choques é adequada. Imagine, porém, que os aumentos de alimentos e combustíveis não sejam causados por efeitos transitórios. Isto acontece quando há um crescimento global da demanda de alimentos e combustíveis acima da oferta. Ora, se todos os bancos centrais agem ignorando estas pressões inflacionárias, então, no mundo inteiro, estes aumentos ocorrerão sem que tenha havido reação de política monetária para diminuir a demanda (observe, o impacto primário dos choques seria acomodado, e alguns poucos bancos centrais que não usam o núcleo por exclusão evitariam apenas os reflexos secundários na inflação interna). Assim, o descompasso entre demanda e oferta persiste, e os preços de alimentos e combustíveis continuam subindo. Em outras palavras, se individualmente os bancos centrais acham que os aumentos de alimentos e combustíveis são meros choques, quando na verdade são fenômenos mundiais de desbalanceamento entre a demanda e a oferta globais, então a situação tende apenas a agravar-se.

A situação da economia mundial hoje é muito próxima disso. A entrada da China e de outros países emergentes no mercado consumidor mundial causou um aumento do preço das "commodities". Esta elevação foi agravada por dois fatores. Primeiro, os EUA resolveram subsidiar a produção de álcool do milho, causando uma enorme pressão adicional em preços de alimentos. Segundo, vários países adotaram políticas de subsidiar preços de alimentos e combustíveis, na esperança de serem os aumentos internacionais dos preços de "commodities" passageiros. Os bancos centrais do mundo não reagiram a este excesso de demanda pela falta de coordenação (sempre achando que a elevação de preços de alimentos e combustíveis era transitória). Durante um bom tempo, a política monetária global foi muito acomodativa. De fato, o juro nominal mundial médio de 2002 a 2005 foi 2,2% ao ano, muito abaixo da taxa de 5,3% ao ano na média dos últimos 20 anos.

Em 2006 os juros voltaram a subir, mas a crise dos empréstimos "subprime" norte-americanos fez com que caíssem de novo. Em suma, hoje vive-se um período de inflação mundial, causado pela política monetária excessivamente passiva. Para que isto não ocorra novamente, os bancos centrais devem adotar políticas de metas para a inflação que utilizem índices de inflação cheios (sem excluir alimentos e combustíveis). Também poderia ser adotado como meta o núcleo por médias aparadas.

E a atitude de acomodar choques de oferta (de alimentos, combustíveis ou "commodities") deve ser muito disciplinada: se o "choque" que motivou a política não reverter num prazo bem determinado, então os juros têm que ser elevados (isto é, a política tem que ser alterada).

O que deve ser feito agora? Os bancos centrais do mundo inteiro já começaram a reagir aumentando os juros. Uma elevação coordenada seria muito positiva. É claro, a velocidade deste aumento depende do desenrolar dos reflexos da crise do "subprime". Adicionalmente, os países devem retirar seus subsídios para alimentos e combustíveis e os EUA devem também acabar com o subsídio para a produção de álcool a partir do milho. Algumas desta já estão em andamento (embora em um ritmo aquém do desejado), e terão o efeito de desaquecer a economia e diminuir a inflação global. Os preços das "commodities" provavelmente cairão de seus picos históricos recentes.

E, no Brasil, o Banco Central vai ter um trabalho um pouco mais difícil para fazer com que a inflação retorne à meta (em 2010, provavelmente). Ter-se-á um aumento de juros maior e mais prolongado do que seria necessário se houvesse a colaboração do resto do mundo (ou seja, se os outros países combatessem o excesso de demanda mais rapidamente). A tarefa que está à frente do banco central é árdua. Por isso, a ajuda da política fiscal é fundamental. O governo tem que conscientizar-se de que os gastos públicos devem crescer em um ritmo muito menor.

Sérgio Ribeiro da Costa Werlang, vice-presidente executivo do Banco Itaú e professor da Escola de Pós-graduação em Economia da FGV, escreve mensalmente às segundas-feiras.