Título: Governo usou crise para mudar a Anac, acusa ex-diretora
Autor: Rittner , Daniel
Fonte: Valor Econômico, 09/07/2008, Especial, p. A14

A ex-diretora da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) Denise Abreu afirma que o Palácio do Planalto usou o caos aéreo como "álibi" para acuar a antiga diretoria do órgão regulador e forçar a renúncia de seus integrantes. Segundo ela, o episódio da compra da VarigLog pela Volo do Brasil não foi a única divergência frontal entre a Anac e a Casa Civil. Após o acidente da Gol, em setembro de 2006 - três meses depois da polêmica aprovação da venda da VarigLog -, o governo entrou novamente em rota de colisão com a agência.

A Casa Civil jogava a responsabilidade pela crise aérea na postura das empresas, para livrar o governo da ira dos passageiros, enquanto a Anac atribuía o problema à falta de infra-estrutura aeroportuária, à ação dos controladores de vôo e, principalmente, aos desdobramentos provocados pela semi-paralisação da Varig. "As verdadeiras razões do apagão aéreo foram maquiadas de forma que a culpa recaísse sobre a diretoria da agência", diz Denise, que revela, nesta entrevista, bastidores dos principais momentos da maior crise da história da aviação civil brasileira.

A quebra da Varig

A Varig já estava em situação pré-falimentar em 20 de janeiro de 2006, quando os diretores da recém-criada Anac assumiram seus cargos, mas era líder nos vôos internacionais e ainda detinha 19% do mercado doméstico. Uma das primeiras tarefas da diretoria foi elaborar um plano de contingência para sua iminente paralisação. "Ela não conseguia atender a demanda dos passageiros que já tinham bilhetes comprados, inclusive para a Copa do Mundo. Fizemos contato com outras empresas, brasileiras e estrangeiras, para fazer o transporte dos passageiros", recorda Denise. Mas surgiu um problema: muitas estrangeiras se recusavam porque a Varig estava em dívida com as companhias americanas e européias na câmara de compensação da Iata, a associação mundial das aéreas.

Além de gerar um clima de desespero em aeroportos no exterior, houve um enxugamento abrupto das operações domésticas, com cancelamentos de última hora. Em 27 de junho, Marco Bologna, então presidente da TAM, enviou e-mail à diretoria da Anac comunicando que a Varig já lhe devia US$ 1,7 milhão pelo transporte de passageiros em vôos internacionais e R$ 1,6 milhão pela realocação em vôos nacionais. Avisou que cancelaria a aceitação de endosso de bilhete, pelos prejuízos causados à TAM.

Para continuar embarcando os passageiros da Varig, "a pedido do governo", esclareceu o executivo, "necessitamos de definições claras e precisas para podermos contabilizar devidamente essas perdas financeiras ou como será feito o ressarcimento dos valores pendentes". Àquela altura, ressalta Denise, a diretoria da Anac já estava desgastada com o Palácio do Planalto por causa da resistência em aprovar a venda da VarigLog para a Volo do Brasil, cujos investidores brasileiros eram apontados como "laranjas" do fundo americano Matlin Patterson.

É aí que surge um novo problema, segundo a ex-diretora. Denise conta que, para ganhar tempo e manter as rotas até a chegada de novas aeronaves, "o André Patrão começa a brincar com a portaria 569". Patrão era, no segundo semestre de 2006, o diretor de planejamento da Varig. A 569, portaria do extinto Departamento de Aviação Civil (DAC), é válida até hoje e determina o prazo para uma empresa aérea retomar operações interrompidas. No caso de rotas domésticas, a empresa tem 30 dias para retomá-las, antes de perder os direitos de exploração. De acordo com Denise, a Varig voava em algumas rotas, vendia bilhetes e em seguida parava as operações. "Eles usavam o prazo até o limite."

O papel do juiz Ayoub

Para minimizar o caos nos aeroportos, a Anac toma providências. A primeira é redistribuir as áreas de check-in em Guarulhos. "Enquanto os balcões de um terminal permaneciam com a Varig e estavam vazios, por causa da escassez de vôos, a asa de outro terminal vivia abarrotada pelos passageiros da TAM e da Gol, que ocupavam o mesmo espaço. Era preciso reorganizar tudo", diz Denise.

A segunda medida foi a retomada de 56 "slots" (faixas de horário de pousos e decolagens) em Congonhas, em agosto de 2006. Visava combater a falta de regularidade dos vôos e redistribuir os slots para outras companhias, desafogando a malha aérea no aeroporto mais concorrido do país. As providências são vetadas pelo juiz Luiz Ayoub, da 8ª Vara Empresarial do Rio, que cuida do processo de recuperação judicial da "velha" Varig.

Após uma batalha judicial, prevalece a posição de Ayoub e a companhia preserva seus horários de vôos em Congonhas, bem como os balcões em Guarulhos, mesmo sem usá-los. "Diante das incertezas que estavam sendo colocadas, as empresas não se sentiam seguras para fechar novos contratos de leasing", afirma.

O acidente da Gol

Os primeiros dias após o acidente com o vôo 1907 da Gol são de "reorganização da malha (aérea) e aflição por parte dos passageiros", diz Denise. "Em outubro, começam a aumentar os atrasos de vôos. Esse problema começa a ser acompanhado de perto pela Casa Civil. E ela dizia que as empresas vendiam mais passagens do que o número de passageiros que elas podiam transportar (overbooking). Nós (Anac) avaliávamos que era um problema dos controladores."

Já havia mal-estar entre a Anac e a Casa Civil, que usou esse novo conflito para enfraquecer a diretoria da Anac, segundo Denise. "O Milton (Zuanazzi, então presidente da agência, ligado à ministra Dilma Rousseff) resolveu assumir a coordenação disso. A meu ver, e na visão de outros diretores, não foi uma atitude correta porque corroborava a visão de que a Anac era responsável pelos atrasos", diz.

"Quero deixar claro que os problemas decorrentes do caos aéreo faziam parte de uma falta de estrutura do sistema. No governo Lula, a Infraero priorizou as obras de Congonhas no terminal de passageiros. Foi feito um edifício-garagem. Nós colocamos a reforma da pista em audiência e diminuímos o número de movimentos, conforme orientação do Decea."

O "overbooking" da TAM

Famílias deitadas nos saguões, computadores atirados ao chão e jatos da FAB transportando passageiros. Essas cenas ocorreram às vésperas do Natal de 2006 e deixaram o governo em estado de alerta total na semana que antecedeu o Ano Novo. O diretor Josef Barat fica responsável por uma fiscalização, entre os dias 26 e 28 de dezembro, para identificar as causas do maior caos já vivido nos aeroportos brasileiros, até aquela data, como conseqüência de problemas na TAM.

A Anac monta uma operação de guerra para assegurar uma passagem de ano em relativa calmaria. "Já tínhamos acesso às informações que o Barat vinha colhendo e também a devida interlocução com a Infraero e com as empresas aéreas para tomar providências. Tivemos um réveillon tranqüilo."

Poucos dias antes, Barat comunicara os resultados do monitoramento. A agência chegara à conclusão de que o "overbooking" não havia sido o fator determinante para o caos. "O Milton chamou toda a diretoria para uma reunião na Anac. Era sexta-feira. Disse que o Waldir Pires (ministro da Defesa) não tinha gostado nada do relatório do Barat. A função do relatório não era encontrar culpados, mas evitar problemas futuros. Ele detectou dificuldades em todo o sistema aéreo. A postura do governo gerou uma crise e tivemos que editar resolução de última hora para explicar que aquilo não era uma auditoria - até porque auditoria jamais pode durar só uma semana -, mas uma força-tarefa", diz.

Na primeira semana de janeiro, a agência determina a realização de uma auditoria mais detalhada. Desta vez, ela ficou a cargo do secretário-geral da Anac, Henrique Gabriel. "Naquele momento, para a Casa Civil, era o Barat quem defendia os interesses da TAM. Ele ficou numa situação muito delicada", recorda Denise.

Na última semana de março de 2007, a Anac revelou os resultados da auditoria. Ela destacava que a manutenção não-programada de seis aviões na semana do Natal havia contribuído muito para os transtornos, mas indicou cinco causas estruturais: 1) a saída da Varig do mercado e o aumento da taxa de ocupação das suas concorrentes; 2) a impossibilidade de a Anac , por determinação judicial, redistribuir as linhas abandonadas pela Varig; 3) o acidente com o Boeing da Gol e a posterior reação dos controladores; 4) baixa capacidade sistêmica para acomodar passageiros que tiveram seus vôos cancelados, já que TAM e Gol estavam operando quase no limite; e 5) o crescimento de dois dígitos do setor, sobrecarregando os aeroportos e a oferta das empresas.

O voto de Zuanazzi

Segundo Denise, a auditoria da Anac frustrou o governo ao deixar claro que o overbooking não havia sido o motivo primário do drama vivido no Natal. Em 65 rotas da TAM, houve apenas 664 reservas feitas acima da capacidade dos vôos entre 20 e 24 de dezembro, o equivalente a 0,13% do total de assentos. "Em qualquer lugar do mundo, menos de 1% de overbooking não geraria aquele caos a que assistimos. Mas havia uma avaliação governamental, sobretudo da Casa Civil, de que o problema era das empresas. O Milton queria chegar no overbooking da TAM."

A controvérsia pode ser observada na ata da reunião de diretoria de 30 de março de 2007. A Superintendência de Segurança Operacional (SSO) relatou que, de todos os cancelamentos de vôos da TAM, 67% foram atribuídos a problemas no controle de tráfego, 19% a imprevistos causados pela manutenção não-programada de aviões e 8% por razões meteorológicas. A conclusão era de que o overbooking teve "pouca influência", contrariando a tese defendida pelo governo. A diretoria aprova o relatório, mas Zuanazzi faz constar em ata sua desconfiança. "Manifesto-me inicialmente pela publicação integral do mérito técnico apontado no referido relatório, sem, no entanto, me sentir integralmente satisfeito com as respostas encontradas", destacou. Denise explica a percepção dos demais diretores sobre essa manifestação. "O Milton registrou um voto em separado. Como ele sempre foi afinado com a visão política e não técnica da aviação, ele marcou seu alinhamento com a Casa Civil."

O motim dos controladores

Em 30 de março, enquanto o presidente Luiz Inácio Lula da Silva voava para os Estados Unidos, controladores organizam um motim e paralisam os aeroportos de todo o país, pedindo a desmilitarização do setor. "Só em 2 de abril, quando o presidente Lula retorna de Nova York, o brigadeiro (Juniti) Saito é autorizado a tomar medidas mais drásticas contra os controladores e reassume o comando da força."

"O Saito foi o responsável por solucionar o problema", diz Denise, lembrando a instauração de inquéritos militares para enquadrar os líderes do motim e a mão dura do brigadeiro no tratamento com os controladores. "A partir daí, os atrasos vão gradativamente baixando. A nação deve muito a esse comandante. Ele recolocou o nível de atrasos em um patamar histórico, que talvez não seja o ideal, mas foi o que sempre tivemos", diz.

Em 22 de junho, Saito determinou a transferência de 150 controladores da defesa aérea nacional para a aviação civil. Conseguiu diminuir, em três semanas, de 24% para 14% o número de vôos com atrasos superiores a uma hora. A situação, pouco a pouco, voltava ao normal quando houve a tragédia com o A320 da TAM, em Congonhas, em 17 de julho.

Denise apareceu como vilã da crise quando a desembargadora Cecília Marcondes, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, disse ter sido enganada pela ex-diretora ao receber um documento que baseou sua decisão de autorizar a volta de aviões de grande porte ao aeroporto, mesmo em dias de chuva. Denise se defende com base em três argumentos.

Ela diz que apenas acompanhava, "por respeito" à desembargadora, representantes da procuradoria jurídica da Anac, responsável pelos documentos. Sustenta que a instrução suplementar ISRBH 121-189 da agência não tinha "validade legal", por se tratar de um estudo interno, e só tornou-se uma norma oficial da Anac em maio deste ano, por meio de resolução assinada pela atual presidente, Solange Vieira. E argumenta, por fim, que os únicos aviões vetados à época pela Justiça eram o Fokker-100 e os Boeings 737-700 e 737-800. Por não estar da lista de jatos proibidos, o acidente com o A320 não teria sido evitado.

Sob pressão, Denise renunciou em agosto. Foi a primeira da antiga diretoria a demitir-se. "A Anac foi qualificada por todo o governo como uma agência que defendia o interesse das empresas. O engraçado é que, quando interessava ao governo, nós tínhamos autonomia", diz. "O Planalto adotava o discurso da autonomia quando precisava encontrar culpados."