Título: Mudança climática assimétrica
Autor: Canuto , Otaviano
Fonte: Valor Econômico, 10/07/2008, Opinião, p. A14

Reduzir a contribuição humana às mudanças climáticas provocadas pelo aumento de gases-estufa na estratosfera será necessariamente uma tarefa global. Como tais gases se misturam de modo uniforme na atmosfera, de um ponto de vista ambiental não importa de onde se originam no planeta as emissões e, portanto, o esforço de atenuação dessas terá de ocorrer em todas as áreas do planeta onde sejam significativas.

A complexidade é enorme. Há um problema de ação coletiva, ou seja, na ausência de algum processo de negociação e compromissos mútuos efetivos quanto ao esforço de diminuição de emissões de gases-estufa; a tentação de esperar que outros incorram no sacrifício tende a levar a que, no conjunto, não ocorra tal mitigação. Além disso, as causas e conseqüências de tais emissões, além de cercadas de inevitável imprecisão, tendem a ser avaliadas sob prismas e interesses diversos.

Tal diversidade de perspectivas decorre de três assimetrias que atravessam a questão. Antes de tudo, há a assimetria temporal, ou seja, o fato de que os benefícios das ações de mitigação serão usufruídos especialmente por futuras gerações, ao passo que os custos serão incorridos no futuro próximo. Neste contexto, não há motivo para esperar homogeneidade de preferências entre nações soberanas quanto ao valor do futuro a ser preservado em relação ao presente.

Uma segunda assimetria, de natureza geográfica, diz respeito ao esforço de mitigação. Dadas as tendências atuais de emissões de carbono, alguns países em desenvolvimento (especialmente China e Índia) se tornarão grandes emissores e, portanto, o necessário esforço de mitigação a ser por eles aplicado dificilmente deixará de ser desproporcional a sua própria contribuição passada ao estoque de gases-estufa.

Há ainda uma terceira assimetria, também de caráter geográfico: as consequências econômicas negativas do aquecimento global serão sentidas de modo não uniforme no planeta e algumas regiões em desenvolvimento serão as mais atingidas, sofrendo efeitos passíveis de atenuação apenas mediante elevados custos de adaptação local. A maioria deles sequer estará no grupo dos novos grandes emissores, constituindo-se, portanto, em perfeitas vítimas das mudanças climáticas acentuadas por outros.

A heterogeneidade geográfica ocorrerá no caso dos vários efeitos negativos da mudança climática, tais como maior freqüência de ondas de calor, maior intensidade nas tempestades, enchentes e secas, difusão mais rápida de certas doenças e perda de biodiversidade. Tome-se, por exemplo, o impacto da subida nos níveis dos oceanos. Estima-se que o atual curso de aquecimento global deverá implicar níveis entre 1 e 3 metros mais altos neste século, podendo chegar a 5 metros, caso haja ruptura de placas glaciais na Groenlândia e na Antártica Ocidental. Uma pesquisa realizada pelo Banco Mundial sobre seu impacto em 84 países em desenvolvimento trouxe resultados alarmantes. Centenas de milhões de pessoas terão provavelmente de se deslocar, sofrendo danos econômicos e ecológicos. No caso de alguns países - Vietnã, Egito, Bahamas, etc. - as conseqüências poderão ser catastróficas.

-------------------------------------------------------------------------------- Um acordo internacional não eximirá ninguém de adotar medidas como aquisição de energia onde for mais limpa e eficiente --------------------------------------------------------------------------------

Embora todos no planeta devam sofrer com o deslocamento de contingentes populacionais, perda de infra-estrutura, etc., o fato de que a área agriculturável em algumas regiões mais frias poderá aumentar ilustra a assimetria nos efeitos. Enquanto isso, áreas em economias de desenvolvimento que estão próximas da linha do Equador e que estão em baixa altitude poderão ultrapassar limiares de temperatura a partir dos quais a produtividade agrícola tende a se reduzir.

As implicações das assimetrias geográficas são claras. Há fundamento para o argumento moral de que a comunidade internacional tem a obrigação de apoiar e compensar o esforço de "adaptação" por parte das regiões perfeitas vítimas. Por seu turno, no que diz respeito ao esforço assimétrico de "mitigação" das futuras emissões e do aquecimento global, só pode haver expectativa realista de se alcançar algum tipo de acordo de alcance global caso haja alguma compensação pela assimetria entre emissões passadas e cortes de emissões futuras. Afinal, reduzir as contribuições antropomórficas ao estoque de gases-estufa - principalmente dióxido de carbono liberado com a queima de combustíveis fósseis e desmatamento - não será sem custos e, portanto, o reconhecimento das assimetrias estará no centro da negociação por parte das economias em desenvolvimento, grandes futuras emissoras.

Tal acordo internacional não eximirá ninguém de adotar medidas domésticas apropriadas, tais como evitar subsídios ao uso de combustíveis fósseis ou ao desmatamento, abandonar políticas de auto-suficiência energética em favor da aquisição de energia onde for mais limpa e eficiente etc. Contudo, níveis diferenciados de comprometimento com metas e/ou um componente de transferência de tecnologia e recursos a fundo perdido de velhos emissores para os potenciais emissores emergentes também terão de estar presentes.

Aceitar que o reconhecimento das assimetrias será necessário para tal acordo traz implicações para o debate atual sobre que instrumentos privilegiar para precificar as emissões de carbono e, assim, eliminar-se a falha incorrida pelos mercados pelo fato dos preços de bens e serviços não refletirem sua contribuição ao estoque de carbono na estratosfera. Há, de um lado, aqueles que defendem a simples aplicação de uma "taxa de carbono" como forma de correção. Outros preferem esquemas de "quotas-com-comércio" como os já previstos no Protocolo de Kyoto, nos quais limites máximos de emissão são estabelecidos em nível de firmas e setores e permite-se que "créditos de carbono" sejam comprados de outros que consigam reduzir emissões com menor custo. Uma taxa de carbono enseja maior estabilidade ao preço do carbono, enquanto as quotas-com-comércio dão maior segurança quanto às quantidades de carbono emitidas.

Em nível global, tende a ser mais complexa qualquer conciliação entre o reconhecimento das assimetrias e a taxa de carbono. A diferenciação de taxas nacionais, para além da complexidade na negociação, introduziria distorções de preços. Uma taxa global com algum mecanismo de transferência tributária compensatória das assimetrias, por sua vez, implicaria um grau de politização recusado pelos emergentes emissores. Metas diferenciadas de emissão, com tendência a colocar países em desenvolvimento como prováveis vendedores de crédito de carbono, a partir de transações privadas, tendem a ser mais palatáveis.

E o Brasil em tudo isso? A matriz energética relativamente limpa de carbono, por conta das hidrelétricas e dos biocombustíveis, dá-lhe graus de liberdade. O calcanhar-de-aquiles está no desmatamento. Mas aí vale comprometer-se com metas, independentemente até de qualquer aquecimento global assimétrico.

Otaviano Canuto é vice-presidente para países do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e professor (licenciado) da FEA-USP.