Título: Juros: duas entrevistas, uma visão
Autor: Edward Amadeo
Fonte: Valor Econômico, 29/12/2004, Opinião, p. A9

O desempenho da economia brasileira em 2004 foi muito melhor do que se esperava. O PIB crescerá acima de 5%, quando alguns analistas previam 2%, e os mais otimistas, 4%. A massa salarial crescerá 7% de janeiro a dezembro. O saldo comercial fechará acima de US$ 33 bilhões - a expectativa no inicio do ano era de US$ 20 bilhões. A formação bruta de capital fixo está crescendo 20% ao ano, a relação entre a dívida pública e o PIB caiu cerca de 4 pontos percentuais, e entre exportações e dívida externa cresceu 1/3 (de 0,31 para 0,42). O risco-país caiu abaixo de 400 pontos em dezembro. Só a inflação veio acima do esperado: 7,3%, ante a projeção de 6% no início do ano. Parte da surpresa inflacionária advém do aumento de preços de bens importados e exportados. Mas é muito difícil prever o ritmo de expansão da demanda com a velocidade em que vêm crescendo o crédito, a demanda de duráveis e de bens de capital, assim como as exportações. Em resposta ao risco de excesso de demanda, o governo elevou a meta do superávit primário, de 4,25% para 4,5% e o Banco Central agiu preventivamente, elevando a meta da Selic. Quem criticou o governo por fazer "mais do mesmo", copiando a política econômica de FHC, bem poderia reconhecer que, afinal, a economia não vai tão mal assim. Quem, no início do ano, previa fraqueza da demanda, ou a proximidade de uma nova crise cambial, deveria reconhecer que os riscos diminuíram, não aumentaram. É verdade que o crescimento da economia global ajudou, mas é inegável que os indicadores de solvência fiscal e externa melhoraram, o que indica que a economia está mais resistente a choques externos. Olhando mais à frente, a aprovação este ano das reformas do Judiciário e da lei das falências tende a reduzir a incerteza jurídica e o risco dos investimentos, ambas medidas que reduzirão o custo do capital. Esse efeito nada tem a ver com decisões do Copom sobre taxa de juros, mas sim com o excesso do custo do capital para as empresas em relação à taxa básica do Banco Central, que explica 2/3 da taxa de juros para as empresas. A percepção de que os juros são elevados no Brasil devido ao risco de insolvência fiscal, à baixa taxa de poupança, especialmente do setor público, e a imperfeições institucionais nos mercados de capitais e crédito aos poucos substituem a visão simplista de que a culpa está na ortodoxia do Banco Central. Reduzir a rigidez dos gastos do governo - o que requer a desvinculação das despesas à receita e ao salário mínimo - e elevar a poupança do setor público - o que demanda não elevar gastos correntes e tornar o superávit primário pró-cíclico - são meios para reduzir a taxa de juros básica do Banco Central. As reformas microeconômicas de redução do risco jurídico, simplificação do processo judiciário em causas econômico-financeiras, autonomia das agências reguladoras, alongamento da poupança e desoneração tributária das operações financeiras reduzem o spread entre a Selic e os juros para tomadores finais.

O reconhecimento de que o nível de juros está associado a temas fiscais e institucionais é a mais importante inovação do debate econômico de 2004

Duas entrevistas recentes dão o tom da mudança da agenda do país em torno desse tema central, que são as condições para a redução da taxa de juros. "O spread da taxa de juros está vinculado à taxa de risco e também à inadimplência. Veja bem: se o sistema legal dá proteção ao devedor, aumenta a taxa de inadimplência. Então, os investidores transferem o risco para os adimplentes. E como eles fazem isso? Aumentando a taxa de juros. Porque os juros altos dos adimplentes compensam as perdas com os inadimplentes. Isto é uma visão de mercado. Haverá possibilidade de reduzir a taxa de juros no momento em que houver segurança jurídica no sentido de que os contratos sejam cumpridos". Palavras do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Nelson Jobim ,em entrevista a Juliano Basile e Thiago Jayme, do Valor, em 13 de dezembro. Trata-se do mais importante depoimento recente sobre a relevância do Poder Judiciário para o desenvolvimento econômico. "Não acho que o caminho para nossa taxa de juros ser menor seja aceitar mais inflação." Palavras do ministro da Fazenda, Antonio Palocci, em entrevista a Miriam Leitão, no jornal "O Globo", no último dia 21. Há uma notável convergência entre as visões de Jobim e Palocci no que concerne à origem dos juros altos: "Juro não cai no grito; juro cai quando se toma as medidas que melhoram o ambiente de crédito, os contratos". As reformas na pauta do governo, segundo o ministro, são a autonomia do Banco Central, e medidas para melhorar o funcionamento dos mercados de crédito, capitais, seguro e poupança de longo prazo. A combinação da política econômica dos primeiros dois anos do governo Lula e as visões do Presidente do STF e do Ministro da Fazenda levam a crer que, cada dia mais, a agenda do país se baseia no papel da reforma das instituições para o desenvolvimento. A política econômica é importante: câmbio flutuante, e não controle de capitais; cumprimento de metas de inflação, e não comprar crescimento com inflação; ajuste fiscal, e não desenvolvimento com maior endividamento do governo. Mas a qualidade das instituições é fundamental: democracia, independência dos poderes, respeito aos contratos, transparência fiscal, qualidade da regulação dos mercados, especialmente de capitais, crédito e trabalho. Esse último ponto é básico: enquanto os mercados que envolvem trocas intertemporais não forem adequadamente regulados, de modo a minimizar as incertezas contratuais inerentes ao seu funcionamento, a eficiência dos investimentos e a produtividade dos trabalhadores serão obstáculos ao crescimento econômico. O reconhecimento de que o nível das taxas de juros está associado a temas fiscais e institucionais é a mais importante inovação do debate econômico de 2004.