Título: Kibutz se moderniza em Israel e ganha contornos 'capitalistas'
Autor: Palmeira , Christina
Fonte: Valor Econômico, 11/07/2008, Especial, p. A14

Quem imagina um kibutz corre o risco de pensar em dezenas de jovens judeus de shorts, colhendo laranjas e entoando marchas militares com um sorriso nos lábios. Este pode ser o quadro - hoje amarelado - pintado à época dos pioneiros. Mas, após 60 anos de fundação do Estado de Israel - com crises econômicas, a alta da inflação dos anos 80 e a privatização da década de 90 - a utopia socialista que inspirou os primeiros kibutzim cedeu espaço ao pragmatismo econômico.

Nas terras de Israel do Século XXI, os kibutzim não formam um bloco homogêneo. Pelo contrário. Os bem-sucedidos se converteram em verdadeiros " business cases" , como o kibutz Hatzerim - leia-se Netafim, a líder mundial do mercado de irrigação por gotejamento. Outros, estão em busca da sua vocação econômica, como o kibutz "dos brasileiros", o Bror Chail, cuja localização é, no mínimo, estratégica - a apenas dois quilômetros da Faixa de Gaza.

Mas, aparentemente, os kibutzim estão experimentando uma nova onda, desta vez, ligada à consciência ecológica e à busca de um estilo de vida mais próximo da natureza. O kibutz Lotan, por exemplo, procura harmonizar suas atividades com o deserto do Neguev e se baseia em ações como a reciclagem e o eco-turismo. Localizado nas proximidades do balneário de Eilat, o kibutz oferece atividades como shiatsu na água, observação de pássaros, workshops e cursos com um toque ecológico.

O sonho dos kibutzim desembarcou em Israel por volta de 1880, com a primeira leva de imigrantes vindos Império Russo - a primeira Aliyah, as grandes migrações de judeus para a região onde hoje está o Estado de Israel -, que traziam na bagagem os ideais socialistas. A empreitada foi dura - solo árido e pobre, doenças como malária e região pantanosa - e os frutos, parcos. Costumava-se dizer que o solo da Palestina tinha propriedades mágicas para transformar um simples judeu em um forte e nobre fazendeiro.

Assim, o primeiro kibutz, como se conhece hoje em dia, nasceu em 1910 - o Degania, fundados por dez rapazes e duas moças. Em 1914, eles já contavam com 50 membros. Hoje, o kibutz concentra suas atividades tanto na agricultura (avicultura, produção de leite e frutas, como banana e abacate) quanto na indústria, com a Tool Gal Degania, especializada no desenvolvimento e produção de instrumentos para indústria do diamante.

Os kibutzim tinha um quê de organização militar e tiveram um papel fundamental na criação do Estado de Israel e na consolidação das suas fronteiras. Os kibutzim foram ainda grandes fornecedores de militares, intelectuais e políticos, como o atual presidente Shimon Peres.

Por conta da preocupação constante com a defesa, a organização dava ênfase a uma estrutura de atividades comunitárias. Cada membro dispunha de uma moradia, mas ele dividia a mesa com os demais nos refeitórios. A educação era um caso à parte. Aliás, a escola e a creche eram os locais mais protegidos do kibutz. Abraham Cheinfeld, brasileiro que imigrou para o kibutz Bror Chail, nos anos 50, explica que logo após o nascimento, os bebês eram levados para a creche. Tal medida tem uma explicação simples: as mães deveriam voltar para o trabalho e, muitas delas, para os campos de batalha.

À noite, quando mães e filhos terminavam suas atividades, eles se reuniam no refeitório e podiam passar algumas horas juntos. Depois, as crianças iam para seus dormitórios e os pais para suas casas. Esta fórmula funcionou durante algumas décadas.

Mas as mulheres aos poucos fizeram sua revolução. Primeiro, elas reivindicaram uma cozinha própria- e os refeitórios se esvaziaram. A segunda etapa refere-se à educação das crianças - as mães queriam passar mais tempo com seus filhos. Pela tradição judaica, são elas que transmitem os ensinamentos da religião. As mães venceram a batalha e as crianças passaram a dormir na casa dos pais.

Após esta evolução paulatina do modo de vida dos kibutzim, eles amargaram momentos difíceis nos anos 80, época em que a inflação em Israel explodiu - como ocorreu no Brasil. A crise deixou marcas profundas e provocou uma onda de privatizações, o que deu origens a vários modelos de kibutzim.

Na linha de frente, estão os bem-sucedidos, como o Hatzerim, berço da empresa Netafim, líder no mercado de irrigação por gotejamento. A micro-irrigação não é uma invenção recente. Este método já existe deste a antiguidade, quando se enterravam potes de argila cheios de água para que o liquido se infiltrasse aos poucos no solo.

Mas a moderna tecnologia, esta sim, veio de Israel e foi criada nos anos 60. Em vez de a água ser liberada por buraquinhos, que são facilmente obstruídos, o líquido escoa por passagens maiores e longas. O novo método correu o mundo, primeiro em países como Austrália, e, em fins dos anos 60, chegou à América Latina.

O diretor comercial do Kibutz Haretzin, Nathan Barak, explica que a empresa foi fundada há 40 anos e hoje está presente em nada menos do que 12 países - em um leque que inclui Brasil, México, China, Índia, França, África do Sul e Estados Unidos.

O executivo explica que no início, o kibutz enfrentava um sério problema de abastecimento, pois está localizado na entrada do deserto do Neguev.

"Começamos um projeto que hoje poderia ser considerado como de desenvolvimento sustentável, mas naquela época não havia a consciência que temos hoje em dia. Nós começamos a desenvolver o sistema de gotejamento e no início, mesmo quando oferecíamos de graça, ninguém se interessava", recorda Barak.

Segundo Barak, o mercado potencial da irrigação no mundo é da ordem de US$ 1,5 bilhão, dos quais eles detêm um terço. Como a empresa não é negociada na bolsa de valores, o executivo prefere ser comedido ao citar dados econômicos. Ele salienta que nos últimos cinco anos, a taxa de crescimento anual foi de 15%, mas em 2007 a taxa de expansão chegou a 25%. A meta da empresa é a de repetir a dose este ano. Barak explica que o incremento deve-se ao aumento da demanda, principalmente na esteira de uma maior conscientização em torno do meio ambiente.

No Brasil, a Netafim está presente desde 1994, e há seis anos instalou uma fabrica na cidade paulista de Ribeirão Preto. A agricultura é o principal foco da empresa israelense, que desenvolve soluções para irrigação de todos os cultivos, gerenciamento agronômico e sistemas de irrigação por gotejamento de superfície e subterrâneo. Há seis anos, a Netafim iniciou a instalação de projetos de algodão no Brasil. Na cafeicultura, segundo os dados da empresa, existem 20 mil hectares que são irrigados por gotejamento, desde regiões do cerrado - com clima seco - até áreas mais úmidas, como o sul de Minas Gerais e São Paulo. Com esta tecnologia, de acordo com a Netafim, cresce a eficiência do uso da água, há um incremento da produtividade e uma maior controle fitossanitário.

Apesar da retração observada nas décadas de 80 e de 90 em termos de resultados econômicos, os kibutzim ainda podem ser considerados como uma experiência bem-sucedida. Segundo os dados da Associação das Indústrias dos Kibutzim (KIA), a população dos kibutzim representa apenas 1,8% total de habitantes de Israel - 115 mil pessoas. Em contra partida, eles respondem por 9,6% das vendas da industria israelense, 12% da mão-de-obra do setor e 9,6% de tudo investido na industria.

Mas os números frios tendem a esconder certos fenômenos observados nesta forma singular de organização social e econômica, uma delas é justamente a mudança de perfil.

No tempo dos pioneiros, a principal vocação dos kibutzim era a agricultura. Contudo, a chegada das máquinas liberou um exército de trabalhadores. Era preciso encontrar uma atividade econômica para os braços que vinham da lavoura, e a indústria foi o caminho natural.

Atualmente, boa parte dos kibutzim é dotada de indústrias. Existem mais de 300 fábricas, segundo os dados da KIA, com uma predominância nos setores de plástico e borracha (44%). A indústria alimentícia representa apenas 17%. A grande maioria dos kibutzim, 67% se dedica às atividades industriais e apenas 17% mantiveram a trilha dos pioneiros, ou seja, a agricultura.

O perfil dos habitantes dos kibutzim também mudou ao longo das décadas. O kibutz já não é mais o paraíso dos jovens pioneiros idealistas. Várias gerações se sucederam e, hoje em dia, por conta do declínio deste modo de via, observa-se uma certa concentração de "sêniores".

Alguns deles, contudo, vêem-se numa situação insólita e inimaginável há alguns anos: eles não dispõem de recursos financeiros. É simples: o kibutz era considerado como um modelo à prova de crise. Essa legião de judeus dedicou-se anos a fio a um trabalho comunitário e, neste contexto, a aposentadoria não fazia parte do sistema. Afinal de contas, sempre haveria a geração seguinte que trabalharia e, com isso, garantiria a assistência dos membros que não estavam mais no mundo ativo. Mas, com a crise dos anos 80, o modelo naufragou. Hoje, nesses kibutzim, os moradores que têm a sorte de dispor de uma aposentadoria - em qualquer país do mundo elas costumam ser magras - são obrigados a dividir com os demais. Tudo isso dentro do espírito comunitário.

O grande pesadelo dos kibutzim ocorreu nos anos 80. Tais estruturas contavam com fortes subsídios do governo, com baixas taxas de juros e até mesmo a preciosa água tinha era vendida a preços camaradas. Além, disso houve um esvaziamento, pois jovens partiram dos kibutzim, para "tentar a vida " em outros locais. Assim, os kibutzim foram aos poucos se convertendo em cidades de sêniores - como acontece em parte do interior brasileiro.

Mas o país superou a crise precedente, venceu o dragão da inflação e colocou a economia nos trilhos. Graças a esse movimento, os kibutzim começaram sua lenta recuperação a partir de 2003. Alguns deles decidiram se converter em comunidades voltadas para a ecologia, com o eco-turismo; outros, com o objetivo de conquistar os turistas ortodoxos, construíram sinagogas e passaram a adotar a alimentação kosher - o que não existia no tempo dos pioneiros, pois, a princípio, os kibutzim eram laicos.

Assim, em vez do lema pioneiro "a cada um, segundo a sua habilidade, a cada indivíduo, de acordo com suas necessidades" passou a vigorar a palavra de ordem "a cada um, de acordo com suas preferências e de acordo com sua necessidade". E, assim, os kibutzim romperam o Século XIX.