Título: Benefícios assistenciais: é indispensável o reajuste
Autor: Lavinas , Lena
Fonte: Valor Econômico, 15/07/2008, Opinião, p. A14

Os benefícios assistenciais, cujo valor não é vinculado ao salário mínimo - caso do Benefício de Prestação Continuada (BPC) - carecem de uma regra que venha manter o seu poder de compra. Sem essa regra, qualquer reajuste do valor dos benefícios pagos no âmbito do programa Bolsa Família parece "manobra eleitoreira", quando na verdade expressa falhas na gestão do programa. Esse reajuste já deveria ter se tornado norma, se o que se pretende é que a política assistencial mantenha grau de efetividade elevada.

Exemplos não faltam sobre métodos de reajustes dos benefícios assistenciais e das linhas de pobreza adotados em países onde a política social é elemento indispensável na promoção do bem-estar e alívio da pobreza. Nos EUA, onde a política social é residual, há uma regulamentação específica que garante o reajuste anual do Food Stamps e de outros programas de transferência de renda para pobres. A lei estabelece que seja utilizado o deflator implícito do PIB a cada ano fiscal para corrigir o valor do benefício. A linha de pobreza americana também tem seu valor monetário corrigido anualmente.

A União Européia não foge à regra. Foi adotada, em cada país, uma linha de pobreza relativa - 50% ou 60% da renda mediana registrada em determinado ano. Sua atualização se faz replicando-se a mesma estimativa a cada ano subseqüente ou ajustando-se o valor da linha de pobreza do ano-referência ao índice de preços ao consumidor acumulado no período. Sem isso, haveria uma queda artificial da pobreza, por se tomar como referência um valor nominal. Em Luxemburgo, os benefícios previdenciários e assistenciais são reajustados quando o índice de preços ao consumidor ultrapassa o teto de 2,5%. Na maioria dos países, o reajuste anual se faz com base no índice de preços ao consumidor. Já na Inglaterra, as transferências de renda compensatórias, sujeitas à comprovação de insuficiência de renda, são ajustadas no mês de outubro pelo índice de Rossi registrado em setembro, índice que exclui os custos com moradia e aluguéis, uma vez que faz parte da política social inglesa prover auxílio-moradia na forma de benefício monetário a quem necessita. Trata-se, portanto, de um índice de preços específico para cálculo do ajuste dos benefícios assistenciais. A Holanda, por sua vez, é um dos raros países a adotar o valor da variação do salário mínimo líquido como regra de reajuste.

Portanto, fazer política social, sobretudo quando a meta é atenuar a pobreza, implica aplicar regras que não marginalizem ainda mais os que já vivem à margem. Senão, acaba funcionando uma espécie de dupla focalização perversa, que se auto-anula. Os ingleses reajustaram em 3,9% vários benefícios assistenciais e universais, em outubro de 2007. Não há registro de que isso tenha contribuído para elevar a inflação no Reino Unido. A inflação naquele ano e também em 2006, medida pelo índice de preços ao consumidor, foi de 2,3%. As metas de inflação foram estouradas neste ano e nem por isso essa regra de reajuste foi questionada.

-------------------------------------------------------------------------------- Não é propriamente eleitoreiro reconhecer que a inflação pode agravar um quadro de insegurança para milhões de pessoas --------------------------------------------------------------------------------

No caso do Brasil, a grita generalizada estampada nas manchetes dos jornais após o governo ter compensado parcialmente a perda do poder de compra dos reconhecidamente pobres só faz revelar nosso amadorismo em matéria de política social.

A compensação parcial se explica porque o reajuste recente no valor dos benefícios do Bolsa Família não recupera o que foi corroído pela inflação, em todas as faixas (básicas e variáveis), desde o primeiro dia do governo Lula. Há que recordar que ao lançar o Fome Zero, substituído em outubro de 2003 pela MP do Bolsa Família na centralidade da política de assistência, a meta nunca foi reduzir a pobreza, senão melhorar o grau de acessibilidade alimentar da população mais pobre. Logo, há que ser conseqüente com os propósitos do programa.

Os benefícios do Bolsa Família, cujo valor inicial era de R$ 15,00 e R$ 45,00, sofreram um reajuste de 33,33% muito próximo da inflação apurada pelo INPC de alimentos no período janeiro de 2003 a maio de 2008, de 35,52%. Outras faixas, no entanto, não foram igualmente contempladas e receberam reajustes menores, posto que a atualização não foi linear. É o caso do benefício de R$ 65,00, que passou para R$ 82,00, com correção de 26,15%; e o de R$ 95,00, hoje fixado em R$ 122,00, com recuperação de 28,22% do poder de compra. Na verdade, algumas famílias adentraram por novas faixas de benefícios, mais altos, por ter sido instituído a bolsa variável vinculada ao adolescente, o que significa melhora absoluta. Na prática, o governo gasta menos do que deveria, se isso é um consolo quando se trata de garantir a dignidade daqueles para quem dois ou três reais em um mês fazem diferença.

Desde sua criação, em 2003, o Bolsa Família só ajustou uma vez o valor da linha de indigência e de pobreza. Uma e outra, respectivamente, passaram de R$ 50,00 e R$ 100,00, para R$ 60,00 e R$ 120,00 em 2006. Esses valores estão defasados e deveriam valer em maio de 2008, se ajustados pelo INPC de alimentos, R$ 68,00 e R$ 135,00 respectivamente. Isso contribui para restringir a cobertura (número de beneficiários potencial) e, por conseguinte, também para economizar pelo lado dos gastos do governo.

Não é propriamente eleitoreiro reconhecer que a inflação concentrada nos alimentos de tão alta pode agravar rapidamente um quadro de insegurança alimentar latente para milhões de pessoas. Os dados recém-divulgados pelo Dieese sobre a inflação acima de 50%, em 12 meses, dos produtos da cesta básica, mostra que a medida foi correta. É fundamental prevenir riscos maiores e mais graves. Trata-se de uma posição sensata quando se tem em mãos a institucionalidade forte de um programa de alcance nacional, com grande capilaridade. Porém, para não virar alvo da "oposição eleitoreira", o governo deveria dar provas de compromisso com a eficácia de sua própria intervenção e instituir uma regra para o reajuste da linha de pobreza e dos benefícios assistenciais. Poder-se-ia utilizar como referência para esses reajustes o INPC de alimentos no acumulado de 12 meses, agregando metade do valor da inflação acumulada pelos preços administrados registrado em igual período. Porém, nem o IPCA, nem o INPC, considera famílias cujos rendimentos são inferiores a um salário mínimo. Embora o mais adequado seja construir um índice específico, o risco é que ele jamais saia do papel, como já aconteceu outras vezes. Perder mais tempo só geraria mais perdas para os mais pobres e mau uso político.