Título: Crise faz ressurgir temor com o volume de dinheiro na economia
Autor: Ribeiro , Alex
Fonte: Valor Econômico, 15/07/2008, Finanças, p. C8
A base monetária, uma das medidas mais importantes do volume de dinheiro em circulação na economia, foi multiplicada por 20 desde a edição do Plano Real, saindo de R$ 6,495 bilhões em julho de 1994 para R$ 131,804 bilhões em junho passado, segundo dados do Banco Central.
O ritmo médio de crescimento foi de impressionantes 24% ao ano. Por muito tempo, acreditou-se que expansões monetárias dessa magnitude levariam à aceleração da inflação.
Mas, hoje, os chamados agregados monetários não preocupam mais os economistas, em particular os do BC, que desde 1999 adota um regime em que a própria inflação, e não mais o volume de dinheiro em circulação, é o alvo da política monetária. O fato é que, enquanto explodia o volume de dinheiro, o Brasil vivia um dos períodos mais longos de estabilidade monetária desde a Segunda Guerra Mundial, com inflação média de 8,9% ao ano.
Mas, no exterior, a recente crise internacional fez com que ressurgissem as preocupações com o dinheiro. Não é a volta do velho monetarismo, que teve seu ápice nos anos 1980, muito menos o fim do sistema de metas de inflação. Mas uma pequena corrente de economistas defende que, para evitar bolhas no mercado financeiro e novos desequilíbrios econômicos, os bancos centrais voltem a prestar um pouco mais de atenção no crescimento dos agregados monetários, que medem desde as notas e moedas que os cidadãos carregam nos bolsos até o dinheiro depositado pelos clientes nos bancos.
O economista Edward Nelson, do Federal Reserve de St. Louis, publicou recentemente um texto acadêmico em que procura explicar por que o crescimento do dinheiro em circulação determina a inflação no longo prazo. Outro trabalho acadêmico um pouco mais antigo, mas bastante discutido, de autoria dos economistas Lawrence Christiano, Roberto Motto e Massimo Rostagno (o primeiro da Northwestern University, dos Estados Unidos, e os dois últimos do Banco Central Europeu, o BCE), procura ligar o crescimento do dinheiro em circulação às bolhas e crises nos mercados financeiros.
O recado básico desses trabalhos acadêmicos é: prestem atenção no volume de dinheiro que circula na economia, porque, quando cresce muito rápido, em seguida ocorre uma crise financeira ou a inflação se acelera. A mensagem parece feita sob medida para os dias atuais, em que a economia mundial vive ao mesmo tempo uma crise financeira, criada no mercado de hipotecas americano, e uma aceleração inflacionária em escala global.
Um dos argumentos muito usados é que a crise americana foi precedida por uma forte expansão da liquidez na economia e, portanto, do volume de dinheiro. Se o Federal Reserve tivesse prestado mais atenção na evolução dos agregados monetários, e não apenas na inflação, a crise teria sido evitada. Essa tese, porém, é polêmica. "Não é necessário acompanhar os agregados monetários, bastava dar uma olhada na taxa de juros", afirma o economista José Júlio Senna, da MCM Consultores. "Os juros estavam baixos demais e, se o federal Reserve tivesse feito algo, talvez a crise tivesse sido evitada."
No Brasil, o volume de dinheiro segue crescendo a taxas vigorosas. A base monetária, por exemplo, cresceu 16,44% no período de 12 meses encerrado em maio. A inflação mostra aceleração, e deverá passar de 4,46% em 2007 para 6,4% neste ano, segundo expectativas de mercado colhidas pelo BC. Os bancos também ampliam as suas captações sob a forma de depósitos a prazo, contabilizados dentro do chamado M2, que cresceu 26,2% nos 12 meses encerrados em maio. Toda essa abundância de recursos tem sustentado a expansão de crédito bancário, que avançou 32,4% no período, com prazos cada vez mais dilatados.
Será que esse apanhado de números é um indício de que está sendo formada uma bolha no mercado de crédito e de que, em breve, o Brasil também vai viver um agravamento do quadro inflacionário? A realidade, porém, é que o BC brasileiro, assim como os BCs do resto do mundo, conseguem extrair pouca informação desses agregados monetários. E agiria de forma temerária apenas porque a base monetária e o M2 avança com maior velocidade.
"Não foram os BCs que abandonaram as metas quantitativas para os agregados monetários, foram os agregados monetários que nos abandonaram", disse em seminário na Câmara dos Deputados o diretor de Normas do BC, Alexandre Antônio Tombini, que, como funcionário de carreira da instituição, foi um dos que implantaram o sistema de metas de inflação no Brasil, em 1999.
Nos anos 1980, os BCs mais bem-sucedidos do planeta, como o da Alemanha e o da Suíça, controlavam a inflação por meio da imposição de limites quantitativos para a emissão de moeda. Definia-se que, por exemplo, num determinado ano o M1 não poderia crescer mais do que, digamos, 5%, e perseguia-se a ferro e a fogo esse objetivo. A meta era controlar o volume de dinheiro e, em contrapartida, obtinha-se a estabilidade de preços. Esse jeito de trabalhar ficou conhecido como monetarismo. "A inflação é sempre e em toda parte um fenômeno monetário", disse o seu teórico, o economista americano Milton Friedman.
O sistema funcionou muito bem enquanto a maior parte dos pagamentos na economia era feita em dinheiro ou em cheques, e as aplicações financeiras eram mais simples. Tornou-se menos confiável com a sofisticação dos meios de pagamento e dos instrumentos financeiros. De uma hora para outra, quebrou-se a vinculação imediata que havia entre volume de dinheiro e taxa de inflação, ainda que alguns economistas digam que, no longo prazo, essa relação está mais presente do que nunca.
"Metas para agregados monetários podem se mostrar muito frouxas se, por exemplo, houver uma crise de confiança na economia e a demanda por dinheiro cair, aumentando a velocidade de circulação do dinheiro na economia", explica Tombini. "O mesmo fluxo de dinheiro pode resultar em uma inflação maior do que se imaginava inicialmente."
A queda da confiabilidade do controle de agregados monetários passou a incomodar países que, na década de 1980, mantinham inflação sob relativo controle, abaixo de 10%, mas ainda distante de percentuais considerados desejáveis para países desenvolvidos, próximos a 2%. Em 1989, foi adotado pela primeira vez, na Nova Zelândia, o sistema de metas de inflação.
No velho monetarismo, estabeleciam-se metas para o volume de dinheiro, acreditando que seriam o caminho mais eficiente para controlar a inflação. E, quando a meta para o volume de dinheiro era estourada, o BC subia os juros. No regime adotado pela Nova Zelândia, a meta passou a ser a inflação. O BC sobe os juros quando a inflação projetada sobe acima da meta. Desde então, outros 24 países adotaram o sistema de metas de inflação.
Um caso muito particular é o do Banco Central Europeu (BCE), que tem um sistema de dois pilares. No curto prazo, ou seja, nos dois anos seguintes, a política monetária é guiada por metas de inflação - o mandato é manter a inflação em até 2% ao ano. No médio prazo, existem as metas monetárias. O dinheiro em circulação, porém, é apenas um indicador secundário, que aponta riscos inflacionários, não o gatilho que detona os movimentos na política de juros.
Uma das razões para adotar o sistema de dois pilares era garantir maior credibilidade ao BCE logo na sua criação, em 1998. O diagnóstico era que, para os agentes econômicos acreditarem num sistema inédito, que iria então unificar as moedas de 11 países, seria bom vincular a imagem do BCE à do respeitadíssimo Bundesbank, o BC da Alemanha, que operava com metas quantitativas para a moeda. Mas o BCE, de outro lado, não quis adotar um regime puro de metas monetárias porque o regime já vinha se mostrando pouco confiável.
"Vivi a experiência da grande volatilidade dos agregados monetários nos anos 1990 e sabia como era difícil explicá-la para o público", relatou Otmar Issing, um membro do Bundesbank que participou da fundação do BCE, durante seminário realizado em 2006 que discutiu o papel do dinheiro na política monetária do BCE. "Sabia que os agregados monetários na Europa teriam volatilidade semelhante. Como explicar para o público de forma convincente que se tratava de um fenômeno temporário?"
Hoje, o BCE tem modelos econômicos sofisticados que procuram medir a evolução dos agregados monetários, eliminando eventuais ruídos. Mas, ao contrário do que acontecia nos regimes monetaristas, nos quais se apertava os juros quando o dinheiro em circulação subia além das metas, no BCE não existe uma reação direta e automática. O comportamento dos agregados monetários é visto como apenas mais um risco à estabilidade de preços, juntamente com outros, como taxa de desemprego e grau de ociosidade da economia.
No Brasil, a meta de inflação é o pilar único. Mas isso não quer dizer que os agregados monetários tenham sido largados à própria sorte. O volume de dinheiro na economia também serve como instrumento auxiliar para medir riscos inflacionários. Além disso, por um anacronismo da legislação, o Conselho Monetário Nacional (CMN) tem que estabelecer metas trimestralmente para os agregados monetários, prestando contas regularmente ao Congresso Nacional.
A lei que lançou o Plano Real estabeleceu uma âncora monetária para a moeda. Foi fixado que, entre outubro e dezembro de 1994, a emissão de moeda, ou seja, a base monetária (dinheiro em poder do público mais reservas bancárias), não poderia crescer mais do que 13,33%. E, nos trimestres seguintes, o CMN iria definir metas para a moeda.
O sistema foi, de partida, um fiasco. De outubro a dezembro de 1994, a base monetária cresceu alentados 53,7%. Em primeiro lugar, porque no Plano Real o que realmente funcionou para segurar a inflação foi a chamada âncora cambial - ou seja, uma cotação fixa da moeda que garantia a estabilidade de preços. Outro problema é que as emissões monetárias cresceram por questões outras, que nada tinham a ver com a aceleração da inflação. A população começou a acreditar na moeda e passou a carregá-la no bolso.
Essa é uma tendência que não se esgotou completamente e, de lá para cá, observou-se em vários anos expansões monetárias da ordem de 20% anuais com baixos índices de inflação. No Brasil, o papel moeda em poder do público, ou seja, cédulas e moedas que os cidadãos carregam no bolso, equivale a 2,6% do Produto Interno Bruto (PIB). Há espaço para seguir crescendo, considerando que nos Estados Unidos esse percentual é de 6%, e no Japão, 14%.
Mais recentemente, o volume de moeda na economia foi puxado pelo aumento de renda dos mais pobres e pela expansão do volume de crédito na economia. A queda da inflação, que aumentou a renda real, a expansão do emprego e os aumentos dos benefícios pagos pelo governo, como o programa Bolsa Família e as aposentadorias do INSS, aumentaram a renda dos mais pobres. Essa é a parcela da população com maior propensão a consumir e a menos bancarizada, que carrega mais dinheiro em espécie no bolso. Avanços institucionais no mercado de crédito, como o fortalecimento das garantias em financiamentos de imóveis e de automóveis, levaram à expansão dos empréstimos bancários, puxando o volume de dinheiro em circulação.
Apesar de os agregados monetários não terem papel central nas decisões de política monetária, o BC continua a acompanhar a sua evolução. Os agregados monetários são usados principalmente nos chamados indicadores antecedentes de inflação, que são modelos simplificados, basicamente estatísticos, que procuram identificar a tendência da inflação no curto prazo.