Título: A boa notícia das parcerias público-privadas de irrigação
Autor: Neto , Floriano de Azevedo Marques
Fonte: Valor Econômico, 16/07/2008, Opinião, p. A12

A experiência brasileira com parcerias público-privadas (PPP) é ainda recente. Alguns projetos começam a caminhar, especialmente iniciativas estaduais e municipais. As PPP trouxeram alguma novidade aos modelos tradicionais de concessão e de contratação de obras e serviços. O governo federal anunciou que um dos seus primeiros projetos de PPP a ser licitado será na área de irrigação. O potencial destes projetos é enorme. A irrigação é uma atividade muito peculiar. Juridicamente é um serviço público delegável (artigo 2º, V, Lei nº 9.074/95) que nunca foi integralmente tratado como tal. Diferentemente dos demais serviços (luz, telefone, gás), na irrigação o benefício coletivo está em criar a demanda pelo serviço. A atividade de levar água às áreas agrícolas de nada serve se não for combinada com um programa bem estruturado de ocupação destas terras para culturas viáveis. O objetivo público do serviço não é só prover água. Deve fazê-lo para permitir que terrenos áridos tornem-se aptos à agricultura, dentro de um projeto de desenvolvimento agrícola, econômica e socialmente eficiente.

O serviço público (fornecer água) só faz sentido conjugado com uma atividade econômica (produção agrícola). Aqui começa a dificuldade de se conjugar investimentos em infra-estrutura e na produção. Nem sempre os investidores num setor aceitam correr o risco inerente ao outro. Porém, sem que se invista em ambas as etapas, não se terá êxito num projeto de irrigação.

A partir de estudos desenvolvidos no âmbito da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf), o governo federal, com apoio do Banco Mundial, iniciou um programa para contratar PPP de irrigação na área do Rio São Francisco. Estas parcerias têm potencial de revolucionar aquela região. A grande vantagem destes modelos de PPP é articular o particular responsável pela infra-estrutura com aquele outro incumbido de promover a ocupação agrícola da área irrigada, integrando a população local a um projeto de desenvolvimento regional. Ao invés de tentar fixar população local em condições de subsistência, possibilita-se a integração da região nos vetores de produção agrícola de ponta. As PPP tradicionais permitem substituir a concessão comum ou a empreitada de obra e serviço por arranjos contratuais que deslocam fortemente o risco para o investidor privado. Na irrigação, a PPP permite ir além, articulando um novo modelo de desenvolvimento regional. Portanto, o mérito destas parcerias está em ensejar não apenas o engajamento do investidor privado nos objetivos do poder público. Busca-se uma articulação maior: o poder público agrega particulares dispostos a investir em infra-estrutura pública (redes de irrigação) com particulares desejosos de investir em produção agrícola (abrindo novas fronteiras sem necessidade de desmatamento) e se compromete a integrar a população local, a quem se abre uma oportunidade de compor a cadeia produtiva dentro do agronegócio ou em áreas de sequeiro.

A primeira destas PPP está iniciando o processo de consulta pública. Trata-se de projeto na região do Pontal, no município de Petrolina. Se bem-sucedida, esta PPP liberaria vastas áreas hoje não cultivadas para produção extensiva de alimentos, cana-de-açúcar e oleaginosas.

-------------------------------------------------------------------------------- A PPP muda o velho modelo de irrigação, tornando viável a produção de alimentos, etanol e biocombustíveis --------------------------------------------------------------------------------

Estas PPP de irrigação trazem desafios complexos. O principal está em atrelar serviço público (fornecimento de água para irrigação) com necessária eficácia da atividade privada (produção agrícola) de interesse público. A remuneração do serviço depende do êxito da ocupação agrícola. A produção depende da regularidade do abastecimento de água. Outra complexidade está em condicionar a ocupação das áreas irrigáveis ao cultivo de produtos que possam gerar cadeias produtivas aptas a criar empregos, renda e desenvolvimento, em condições econômicas e ambientalmente sustentáveis.

Há três possibilidades de parcerias possíveis nos setor de irrigação. A primeira, em áreas onde já existe infra-estrutura (canais, estações de bombeamento, dutos) e há ocupação agrícola; trata-se de recrutar particulares para ampliar e recuperar esta estrutura e operá-la, assegurando o fluxo de água com regularidade e qualidade aos agricultores que atuam na região. As outras duas envolvem a criação da infra-estrutura. Na segunda, licita-se separadamente o parceiro privado encarregado de implantar e operar os serviços de irrigação, assegurando-lhe um preço mínimo pela água fornecida e alguma garantia de demanda; de outro lado, licita-se a concessão de direito real de uso das terras irrigadas, de modo a conferir por largo prazo que os concessionários ocupem as terras sob condição de, diretamente ou por agricultores agregados, implementar nelas culturas com adequada adaptabilidade na região e com viabilidade econômica para exploração em larga escala. No terceiro e último modelo licita-se conjuntamente a implantação da infra-estrutura de irrigação e a ocupação agrícola, incentivando consórcios entre os investidores de um e outro segmento; neste modelo a responsabilidade por prover as áreas de água para irrigação está associada ao dever de cultivá-las, recebendo uma contrapartida de poder público para tornar economicamente viável o projeto.

Nos três modelos escapa-se da armadilha que hoje paralisa os projetos de irrigação. O governo tem que investir em infra-estruturas complexas e caras. Por razões políticas, sociais ou econômicas, não pode cobrar pelo uso delas o suficiente para reinvestir e ampliar as áreas agriculturáveis. Nas PPP de irrigação, o governo delimita seus ônus (no montante da contrapartida que ele se disponha a pagar), transfere ao particular integralmente os riscos de projeto e obra e parcialmente os riscos de demanda e de disponibilidade e ocupação agrícola. Mais importante, consegue não apenas aumentar as áreas cultiváveis, mas ampliar as áreas cultivadas. Muda assim o velho modelo de irrigação voltado apenas a condenar o agricultor à cultura de subsistência, pois torna viável a produção de alimentos, etanol e biocombustíveis. E permite articular, num mesmo projeto, a população local (pelo aumento do emprego ou pela oportunidade de cultivo de áreas de sequeiro), as cooperativas agrícolas (bastante competitivas neste modelo) e o agronegócio.

Num contexto em que o mundo debate a falsa oposição entre produção de alimentos e de biocombustíveis, o êxito dessa PPP seria uma ótima demonstração de que com um pouco de criatividade o Brasil pode aliar redução de desigualdades regionais, preservação ambiental, segurança energética, desenvolvimento econômico e erradicação da pobreza. Além de dar uma boa resposta aos incautos internacionais. Mais uma vez, o destino sorri para quem ousa.