Título: SUS: entre o poder e a tragédia, nunca mais
Autor: Fernandes, Wanderley MD
Fonte: Correio Braziliense, 01/03/2011, Opinião, p. 25

Docente de medicina da Escola Superior de Ciências da Saúde - ESCS e cirurgião no Hospital Universitário de Brasília

A saúde pública no Brasil, em inúmeras ocasiões, esteve atrelada a interesses particulares de governantes e autoridades de governo, em detrimento do direito constitucional da população e à revelia da opinião dos profissionais de saúde, na absoluta certeza de impunidade. Submeteram a todos riscos de doenças, epidemias e mortes, sem a mínima culpabilidade até os dias de hoje.

Richard Sennett, professor de sociologia da London School of Economics, em 2002, no seu O declínio do homem público, declara que ¿o público foi uma criação humana, o privado é a condição humana¿. Talvez tenha sido a premissa desse pensamento levada à sua mais perversa consequência por gestores da saúde pública, ao longo da história da ambiciosa reforma do Estado, durante a trajetória da mais ampla política pública de inclusão social universalista e igualitária após a Constituição de 1988, a criação do Sistema Único de Saúde - SUS que provocou, por vários anos, desespero e mortes em várias cidades brasileiras.

Para se ter uma ideia dos repetidos abusos de poder contra a população, o município de São Paulo foi o último da região metropolitana a aderir ao Sistema Único de Saúde federal. A capital ficou de 1993 a 2001 sem receber os recursos e realizar atendimentos pelo SUS porque o então prefeito Paulo Maluf queria fazer do Plano de Atendimento à Saúde - PAS e do Sistema Integrado Municipal de Saúde - SIMS, do sucesssor Celso Pitta, a vitrine do seu governo. Pressionado pelas precárias condições da saúde pública paulistana, acabou se rendendo, após impôr pesados sofrimentos ao povo do município de São Paulo durante longos oito anos.

Cesar Maia, prefeito do Rio de Janeiro, em 2001, por não concordar com as diretizes de atenção primária do secretário Sérgio Arouca, um dos notáveis sanitaristas formuladores do SUS, demitiu-o por e-mail. Em 2002, a cidade sofreu a maior epidemia de dengue da história do país com mais de 200 mil casos e 100 mortos. Em 2005 levou o governo federal a decretar calamidade pública no setor hospitalar federal do Rio de Janeiro. Em meio à grave crise, exonerou 4 dos 6 diretores dos hospitais públicos federais, só e simplesmente porque ¿não concordava com a política institucional do SUS¿.

No Distrito Federal, da mesma forma, na gestão de Joaquim Roriz, em 2003, integrantes de uma força-tarefa para investigar o sistema de saúde pediram o afastamento de todos os diretores e gestores dos hospitais públicos, além do secretário de Saúde. Em ação ajuizada na Justiça Federal, promotores de Saúde e Procuradores da República pediram que a União assumisse a gestão do Sistema Único de Saúde na capital do país, sustentando que ¿o Governo do Distrito Federal tinha perdido o controle das finanças e da administração, cometendo diversas falhas graves¿, levando a assistência pública ao caos e a população ao desespero.

Na recente gestão de José Roberto Arruda a saúde pública mais uma vez foi completamente destruída e sucateada na totalidade das suas unidades regionais. Mesmo diante da extrema escassez na rede, deixaram de aplicar os recursos federais destinados à saúde pública do DF. Relatório do Departamento Nacional de Auditoria do SUS (Denasus) do Ministério da Saúde denunciou que dos R$ 378 milhões repassados pelo Governo Federal para investimentos em Programas de Saúde, R$ 238 milhões foram parar em aplicações financeiras no Banco de Brasília (BRB). E a população sofrendo nas filas ¿ e morrendo. A nova equipe de gestão torna públicas as reincidentes inadimplências daquelas autoridades e prometem auditorias e punições, que é o que mais falta a gestores públicos aventureiros, irresponsáveis e corruptos.

No conjunto das expectativas da sociedade e dos profissionais de saúde em torno do saneamento e da moralização da rede pública do Distrito Federal resta a esperança de que suas unidades restauradas venham a oferecer atendimentos em uma rede hierarquizada, com uma ousada inversão do fluxo da demanda, hoje fortemente dependente da assistência emergencial hospitalar. Que a comunicação social da Secretaria de Saúde possa ter uma linguagem direta e compreensível a toda a população, que convença os usuários e os profissionais de saúde da importância de a resolutividade ter início em cada uma das suas regionais de assistência básica.

E o maior desafio de cidadania que todos esperam é que aqueles que tornaram Brasília a líder no Brasil em mau uso de recursos públicos da saúde e culpados por impor os piores sofrimentos à população Federal paguem, na forma exemplar, pelos seus despotismos.