Título: Crise ruralista deve levar a safra menor na Argentina
Autor: Rocha , Janes
Fonte: Valor Econômico, 17/07/2008, Internacional, p. A11

O governo argentino esperava ganhar ontem mais uma batalha na guerra contra os agricultores do país. O polêmico projeto de lei das chamadas retenções, que eleva o imposto sobre as exportações de grãos, seria votado à noite no Senado, após ter sido aprovado pela Câmara na semana passada. Mas a guerra não terá terminado.

As lideranças ruralistas prometiam questionar na Justiça a lei, caso ela fosse aprovada. Para o ex-deputado Humberto Roggero, do Partido Justicialista (PJ ou peronista), eles não voltarão ao tipo de protestos que marcaram as manifestações até agora, com bloqueio das estradas e desabastecimento nos grandes centros. "Estes são recursos esgotados. O que vai acontecer é que os agricultores vão investir menos na próxima safra, vão produzir menos e isso vai repercutir diretamente sobre as contas do governo, já saturadas com subsídios", disse Roggero, peronista de longa data, que foi deputado por 16 anos e em 2000 presidia a Comissão Bicameral de Negociações Agrícolas Internacionais.

A presidenta da Argentina, Cristina Kirchner, tem dito a pessoas próximas quer que virar a página após o Congresso aprovar a lei. Há quatro meses o assunto monopoliza o país. Seu próximo passo será retomar a discussão de uma espécie de pacto social envolvendo trabalhadores, indústrias, comércio e os agricultores, com vistas a um projeto para quando a Argentina comemorar, em 2010, seu bicentenário de independência.

O pacto social foi uma promessa de campanha de Cristina em 2007, e ela até tentou fazer algumas reuniões no início do ano para tratar do tema. Mas foi atropelada pela maior crise política que atinge o país desde 2002.

A crise começou em 11 de março, quando o ex-ministro da Economia Martin Lousteau mudou a tributação das exportações agrícolas. Revoltados, produtores rurais tomaram as estradas em mais de 300 pontos do país com tratores e caminhões, levando ao colapso o sistema de transporte de carga.

Eles queriam que o governo voltasse atrás na alta de retenções, que elevou de 35% fixos para 44,1% móveis os tributos sobre as exportações de soja. Cristina não cedeu. Até aceitou mudanças em outros pontos do projeto, mas não na escala móvel nem nas alíquotas. Os argentinos se dividiram entre os que apoiavam o governo e os que apoiavam o campo. A divisão ficou marcada nas enormes manifestações convocadas pelas duas partes nesses quatro meses, além dos discursos inflamados e acusações graves de ambos os lados.

Só quando a queda-de-braço completou três meses, Cristina decidiu enviar o decreto como projeto de lei para análise e aprovação do Congresso. Mas já era tarde. Sua base de apoio política sofreu forte redução por conta da pressão que os ruralistas fizeram sobre governadores, prefeitos, deputados e senadores em suas províncias. Os que não apoiavam a demanda ruralista eram ameaçados e criticados em público como traidores.

Em alguns lugares as ameaças chegaram à agressão, como em Tucumán, onde deputados foram agredidos e tiveram suas casas pichadas. A crise também rachou o PJ, comandado pelo ex-presidente Néstor Kirchner, marido de Cristina, e a Central Geral de Trabalhadores (CGT), presidida pelo sindicalista aliado Hugo Moyano, peça fundamental na base de sustentação popular do governo. Uma ala peronista, crítica à política do governo Kirchner e com o modo como se lidou com a crise, formou um grupo opositor em torno do ex-presidente Eduardo Duhalde.

Para Humberto Roggero, os efeitos mais fortes da disputa se darão no ano que vem, com queda na produção agrícola e a cobrança sobre os políticos nas eleições legislativas, que renovarão metade da Câmara e um terço do Senado.

A queda da produção já consta nas projeções da próprio governo. Num informe de ontem, a Secretaria de Agricultura prevê redução de 18% na área plantada de trigo na safra 2008/2009. "As condições atuais no setor, o aumento nos preços dos insumos e a seca provocam a impossibilidade [de plantio] em alguns casos e em outros aumentam a indecisão por parte dos produtores", admite a secretaria.