Título: Por bem ou na marra
Autor: Fleck, Isabel
Fonte: Correio Braziliense, 01/03/2011, Mundo, p. 26

Fecha-se o cerco político, econômico e militar em torno do ditador líbio, Muamar Kadafi. Ontem, os Estados Unidos reafirmaram que ele deve deixar o poder ¿ e o país ¿ ¿agora¿, e começaram a posicionar suas forças navais e aéreas em torno da Líbia. Segundo a secretária de Estado, Hillary Clinton, Washington ¿não exclui nenhuma opção¿ para encerrar a onda de violência. Durante reunião do Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas, em Genebra, ela admitiu que há a possibilidade de declarar uma zona de exclusão aérea sobre a Líbia, para evitar mais bombardeios contra manifestantes. A proposta foi bem recebida pelos chanceleres presentes. Também o premiê britânico, David Cameron, admitiu uma ¿solução militar¿, pela primeira vez explicitamente. A União Europeia adotou sanções mais rígidas que as aprovadas dois dias antes pelo Conselho de Segurança da ONU.

De acordo com o porta-voz do Pentágono, coronel Dave Lapan, o exército americano estuda ¿vários planos de contingência¿, e a mobilização de forças navais e aéreas daria ao presidente Barack Obama um leque de possibilidades. ¿Estamos nos reposicionando, para que haja essa flexibilidade uma vez que as decisões forem tomadas¿, afirmou Lapan. Em Genebra, Hillary evidenciou que a paciência do governo americano, após duas semanas de protestos na Líbia, está no fim. ¿É hora de Kadafi sair, agora, sem mais violência ou atrasos¿, disse a secretária de Estado, que acusou o ditador de usar ¿violentos mercenários e bandidos¿ para reprimir a população.

O exílio foi a opção pacífica sugerida pela Casa Branca para Kadafi. Em uma coletiva em Washington, o porta-voz Jay Carney disse que essa seria uma ¿possibilidade para produzir as mudanças¿, mas não detalhou se o governo americano estaria envolvidos de alguma forma nessa saída. O procurador-geral do Tribunal Penal Internacional (TPI), Luis Moreno-Ocampo, já deu início às investigações preliminares para um eventual inquérito sobre crimes contra a humanidade na Líbia ¿ o que pode determinar outro destino para Kadafi. ¿O escritório (do promotor) examina as acusações de ataques em grande escala contra a população civil. Estamos prontos para agir o mais rápido possível¿, disse Moreno-Ocampo, em Haia. O pedido de investigação foi feito pelo Conselho de Segurança.

Outras medidas Aos demais chanceleres e representantes reunidos em Genebra, Hillary falou sobre a importância de adotar ¿medidas suplementares para que o governo Kadafi preste contas¿. Outras preocupações seriam proporcionar ajuda humanitária e apoiar o povo líbio na transição para a democracia. ¿Nossos valores e nossos interesses convergem, porque apoiar essas transições não é apenas um ideal, é um imperativo estratégico¿, disse.

Uma possível iniciativa, proposta pela Itália, seria estabelecer sobre o país uma zona de exclusão de voos para a Força Aérea líbia, nos moldes da que foi imposta ao Iraque de Saddam Hussein, nos anos 1990. Em Nova York, a embaixadora dos EUA na ONU, Susan Rice, deu aval à opção.

Segundo o chanceler britânico, William Hague, antes de proibir voos é preciso saber se a medida vai ¿salvar vidas¿. A chefe da diplomacia da União Europeia, Catherine Ashton, classificou esse tema como ¿complicado¿.

O bloco europeu, entretanto, não hesitou em anunciar sanções, além das aprovadas pelo Conselho de Segurança no último sábado. O texto europeu prevê o embargo de armas e o congelamento de bens e vistos de Kadafi e de 25 pessoas próximas a ele. Na lista da ONU constavam 16 nomes. Para o especialista Muna Ndulo, da Universidade de Cornell, as últimas sanções aprovadas pelos blocos não apenas são bem-vindas, como ¿apropriadas e decisivas¿. ¿Isso manda uma mensagem clara de que o mundo não vai mais tolerar um regime (usando armas) contra o próprio povo.¿

O governo britânico anunciou que conseguiu evitar que 900 milhões de libras (US$ 1,4 bilhão) em títulos deixassem o país, onde os bens de Kadafi estão congelados, para retornar à Líbia. Os EUA congelaram US$ 30 bilhões em bens do ditador. ¿É o maior bloqueio já feito dentro de um programa de sanções¿, disse o subsecretário do Tesouro para terrorismo, David Cohen.

Ajuda à população A secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, informou ontem que seu governo se comprometeu em destinar US$ 10 milhões para os refugiados líbios no Egito e na Tunísia. Duas equipes de ajuda humanitária foram enviadas à fronteira da Líbia com os dois países. ¿Estamos muito preocupados com a situação¿, disse Hillary. O governo francês, por sua vez, anunciou que enviará duas aeronaves com ajuda humanitária para a cidade de Benghazi. ¿Nas próximas horas, dois aviões vão partir com médicos, enfermeiros, material hospitalar e medicamentos. Isso será o início de uma operação maciça de apoio humanitário às populações dos territórios libertados¿, afirmou o primeiro-ministro francês, François Fillon.

Brasil eleva o tom do discurso Renata Tranches Fabrice Coffrini A secretária de Estado em Genebra: coro afinado contra o regime líbio Durante sua participação na 16ª sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU), o Brasil adotou um tom mais duro para condenar os regimes autoritários do Oriente Médio e do norte da África. A postura confirma as indicações de que a política externa brasileira, sob a Presidência de Dilma Rousseff, vai contrastar com posicionamentos mais benevolentes do Brasil relacionados ao tema durante o governo Luiz Inácio Lula da Silva.

Em seu discurso, a secretária de Direitos Humanos, Maria do Rosário, afirmou que ¿nenhum governo se sustentará pela força e pela violência¿, e pediu o ¿diálogo político¿ para resolver a crise nos países árabes ¿ como na Líbia, que era o tema da reunião. A ministra argumentou que as questões econômicas, políticas e sociais não devem se sobrepor às discussões envolvendo suspeitas de violações dos direitos humanos e crimes contra a humanidade, como estão sendo vistos os ataques de militares leais a Muamar Kadafi contra manifestantes desarmados.

¿Essas situações estiveram ausentes de deliberação deste Conselho¿, afirmou Maria do Rosário. Ela acrescentou ainda que ¿o Brasil considera, e tem defendido, que este conselho debata as violações de direitos humanos em todos os países, onde quer que elas ocorram. Governo algum se sustentará pela força ou pela violência¿. Segundo a ministra, no governo Dilma, direitos humanos não se negociam e a presidente é ¿intransigente¿ com o tema.

Na administração passada, em algumas ocasiões, o Brasil se absteve de condenar países por questões relacionadas aos direitos humanos, como foram os casos de Cuba, Irã, Coreia do Norte, Mianmar, Sudão e Sri Lanka. O que se viu ontem no discurso da ministra, em Genebra, foi uma mudança de tom na condução da política externa. Na opinião do professor de relações internacionais Héctor Luis Saint-Pierre, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), enquanto o governo Lula defendia o princípio da soberania, segundo o qual se tratava de questões internas de cada país, o governo Dilma vê a defesa dos direitos humanos uma maneira do Brasil se projetar internacionalmente. ¿Pode-se dizer que essa será a cor da política externa brasileira no novo governo Dilma¿, disse Saint-Pierre.