Título: Ministros tentam salvar Doha do fiasco
Autor: Moreira , Assis
Fonte: Valor Econômico, 18/07/2008, Brasil, p. A3

Todas as últimas articulações ministeriais para fazer avançar a negociação global de comércio, conhecida como Rodada Doha, fracassaram. A explicação dos ministros foi sempre a mesma: os parceiros exigiam concessões politicamente sensíveis em agricultura, indústria e serviços que eles não podiam assumir. Alegavam que isso dependia diretamente dos chefes de Estado e de governo.

Agora, para tentar salvar Doha do fiasco total, entre 35 e 40 ministros são aguardados a partir de hoje em Genebra para uma maratona que exigirá justamente decisões politicamente duras. Negociadores dizem que na parte técnica não há mais muito o que fazer. Agora é definir o nível de ambição da liberalização agrícola e industrial, o que precisa de decisão política - e persiste a sombra de fiasco.

As reuniões estão previstas formalmente entre segunda-feira e sábado. Mas negociadores experimentados consideram que tudo vai depender das primeiras 48 horas, onde ficará claro se há vontade de negociar ou mais tentativa de jogar no outro a culpa pela quebra da rodada. Também vai depender muito do diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), Pascal Lamy, se ele vai mesmo atuar para intermediar nos temas mais espinhosos.

"No que depender do Brasil, estamos aqui para negociar e não para buscar desculpas", avisou ontem o principal negociador do país, embaixador Roberto Azevedo. Os textos agrícola e industrial que os ministros terão pela frente têm dezenas de páginas, cada. Contêm fórmulas para cortar tarifas e subsídios, com numerosas exceções para país ou grupo de países. Cada país tem uma objeção para algum produto, refletindo os mais diferentes interesses comerciais.

Como nota o Institute for Agriculture and Trade Policy (IATP), praticamente cada país negociou uma exceção para a redução de tarifas de produtos agrícolas, usando categorias de produtos "sensíveis", no caso dos industrializados, ou "especiais" no caso dos países em desenvolvimento. Açúcar, carne bovina e frango, de especial interesse do Brasil, além de arroz, trigo e lácteos, estão na lista de produtos que terão corte tarifário menor - a questão é o percentual.

Como sempre ocorre antes do começo da barganha, as posições endurecem. Com a alta de preços das commodities agrícolas, Argentina, Índia e outros países exigem agora que Washington corte as subvenções domésticas sobre o volume que concedem atualmente a seus agricultores, estimado em US$ 7 bilhões - comparado ao limite entre US$ 13 bilhões a US$ 16 bilhões que está no texto do mediador da negociação.

Na negociação industrial, a fórmula de corte tarifário é impopular entre quase todo mundo e as exceções também se acumulam. O Mercosul obteve uma exceção, mas a Argentina não concorda, achando que é pouco para proteger sua indústria. Por sua vez, os EUA e União Européia condicionam um acordo a que Brasil, Argentina, Índia e outros emergentes cortem nas tarifas aplicadas e não nas alíquotas consolidadas (o máximo que o país pode cobrar). Washington pressiona também pela completa eliminação de alíquotas em algumas áreas, na chamada negociação setorial, na qual gostaria de incluir automóveis, têxteis, produtos eletrônicos, químicos, florestais etc - e que o Brasil recusa.

Os principais negociadores chegam carregando mais problemas do que apoio político. A americana Susan Schwab não tem a menor garantia de que um pacote aprovado em Genebra possa sobreviver no Congresso cada vez mais protecionista. Peter Mandelson, comissário europeu de Comércio, é combatido pela França, na presidência da União Européia neste semestre, por ter supostamente já feito concessões demais para o gosto dos agricultores franceses.

Kamal Nath, o ministro de Comércio da Índia, tem pouca margem de manobra, pressionado internamente a não abrir o mercado quando a agricultura precisa fazer mais investimentos para aumentar a produção. O brasileiro Celso Amorim terá de levar em conta a resistência da Argentina à abertura industrial se quiser manter a integração do Mercosul.

Pascal Lamy, o diretor-geral da OMC, diz que convocou o encontro de ministros porque vê chance acima de 50% de um acordo de base nas áreas agrícola e industrial. De fato, ele espera que a pressão aumente com os ministros em Genebra.

Lamy chegou a publicar carta aberta aos ministros. Argumentou que o que está na mesa agora já reduz os subsídios agrícolas que mais distorcem o comércio entre duas a três vezes mais que a rodada de negociação anterior, elimina as subvenções à exportação e faz uma abertura importante para produtos industriais. Também pela primeira vez, os países deverão frear subvenções para a pesca e evitar a superexploração dos oceanos.

Na véspera da maratona de negociações ministeriais, previstas para durar até sábado da semana que vem, contudo, as atenções estão concentradas na verdade numa briga entre países em desenvolvimento sobre erosão de preferências. Vários países latino-americanos querem que as tarifas e as cotas para produtos tropicais - como açúcar, banana, tabaco, melão etc - sejam completamente removidas. Já países da África, Caribe e do Pacífico (ACP), que se têm beneficiado do acesso preferencial ao mercado dos países desenvolvidos para esses produtos, reagem e alegam que assim perderão suas vantagens. Lamy quer desmontar essa briga entre os países em desenvolvimento ainda nesta sexta-feira.

A questão da erosão de preferências é só um dos pontos que podem fazer a negociação "escorregar", na expressão de um negociador. Para o Brasil, é improvável um acordo pelo qual o etanol seja o único produto excluído de liberalização, como querem os americanos.

As advertências sobre as conseqüências de fiasco se multiplicam. Para Mandelson, da UE, isso pode levar também ao fracasso de um acordo sobre combate a mudanças climáticas ou segurança alimentar, no ano que vem.

Lamy alerta para as ameaças ao sistema multilateral, com uma virada na prioridade de mais países por acordos bilaterais ou regionais, com regras diferenciadas e mais custos para os exportadores e importadores. Também podem aumentar as disputas comerciais sobre temas que não puderam ser resolvidos na negociação - a começar pelos subsídios agrícolas. Para certos negociadores, não será surpresa se os países acabarem a semana congelando o que já foi alcançado na negociação, e continuar dentro de um ou dois anos.