Título: Sigilo telefônico é direito, quebra tem que ser exceção
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Fonte: Valor Econômico, 18/07/2008, Opinião, p. A15
A crise política provocada pela prisão do banqueiro Daniel Dantas, que resultou em desagradável troca de desaforos entre o ministro da Justiça, Tarso Genro, superior máximo da Polícia Federal, e o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, pode, enfim, produzir algo mais do que mal-estar institucional. A ação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para apaziguar as partes resultou no apoio delas ao projeto da nova lei dos grampos, que está parada na Câmara há sete meses e inegavelmente tem que adaptar a escuta telefônica aos tempos democráticos - a lei anterior é de 1965, da época do regime militar, e abre espaço para abusos.
Segundo a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Grampos, existem hoje no país 409 mil telefones grampeados pelas empresas telefônicas por pedidos autorizados pela Justiça e, destas, apenas 48 mil assumidas pela Polícia Federal (PF) como de seu interesse - o que indicaria que os restantes 361 mil grampos tenham sido pedidos pelos juízes estaduais, conforme conclui matéria do jornal "O Globo" ("Sem controle, grampeia-se tudo, todos... 'e outros'", 13/7).
Hoje, com um simples telefonema, um juiz pode autorizar um policial a quebrar o sigilo telefônico de um suspeito de qualquer coisa. Em muitos pedidos de autorização judicial para grampos, os números enumerados são acompanhados da expressão "e outros" - e isso quer dizer que qualquer outro número, mesmo que não tenha nada a ver com a investigação em curso, pode ser incluído na lista encaminhada à operadora para quebra de sigilo. A prática é tão disseminada que as empresas têm mantido funcionários dedicados exclusivamente a fazer os grampos pedidos pela Justiça.
Os resultados da "Operação Ferreiro" são a configuração dos abusos que as facilidades da lei permitem. Na manhã de quarta-feira, foram presas 17 pessoas de uma quadrilha que oferecia aos clientes conferir se seus números telefônicos estão ou não sob interceptação judicial - o que configuraria quebra de segredo de justiça. A banalização dos grampos criou, portanto, uma indústria clandestina que oferece serviços de contra-espionagem. Além disso, tem acontecido, no sistema policial pedidos de grampos que são usados posteriormente para extorsão.
O projeto da nova lei do grampo, da forma como foi aprovado na Comissão de Segurança da Câmara, acaba com as autorizações verbais de grampo pela Justiça, bem como com o recurso aos "e outros" nos pedidos policiais de interceptação telefônica aos juízes. Estes, por sua vez, terão que fundamentar cada autorização.
A lei também acaba com a relação direta que hoje se estabelece entre a Polícia Federal e o juiz, nesses casos. Cada pedido de grampo tem que ser encaminhado ao Ministério Público - e somente essa instituição pode apresentar a solicitação à Justiça, depois de ter analisado o pedido policial, e deve posteriormente acompanhar os procedimentos de investigação.
A proposta também limita o grampo no tempo. Pelas normas em vigor, o pedido de interceptação vale inicialmente por um prazo de quinze dias, mas pode ser adiado indefinidamente pelo juiz. Pela nova lei, o prazo é de 60 dias, com prorrogações que não podem superar os 360 dias.
O vazamento de grampos sob sigilo de justiça continua o ponto mais polêmico do projeto - já o era, desde a primeira proposta apresentada pelo governo, em 2003. A sugestão é criminalizar o vazamento dessas informações mas, na sua primeira versão, isso previa tornar crime também a publicação da escuta. Nessa nova proposta, continua crime o vazamento, mas não a publicação.
Em momentos fundamentais de uma investigação, a escuta telefônica pode ser necessária. A banalização desse instrumento, todavia, pode servir muito mais ao descrédito das investigações da polícia do que a uma efetiva conclusão de um inquérito policial, com todos os elementos para que se possa processar ao indiciamento dos suspeitos. Não se pode, também, a qualquer pretexto, expor um cidadão ao risco de invasão de sua privacidade, cujo direito lhe é garantido pelo artigo 5º da Constituição.