Título: Juros reais e incerteza inflacionária no Brasil
Autor: Spacov , Andrei
Fonte: Valor Econômico, 22/07/2008, Opinião, p. A12
Talvez as duas perguntas mais freqüentes dentro do universo econômico brasileiro sejam: 1) por que nossa taxa de juros real é tão alta comparada a de outros países; e 2) como o país consegue ainda crescer, até ao ponto de gerar pressões inflacionárias, com juros reais deste tamanho. O tempo passa, a estrutura da economia muda e esses enigmas permanecem intactos, desafiando o bom senso dos nossos economistas. Períodos de aperto monetário como o atual são especialmente frustrantes para o observador interessado nesses assuntos. A tão esperada convergência a níveis de juros reais "civilizados" fica ainda mais distante e o imaginário volta a especular aonde foi que erramos e coisas do gênero.
Algumas explicações foram propostas, nenhuma porém que resolvesse definitivamente a questão. Curiosamente, poucas pessoas questionam se por acaso a pergunta em si não poderia ser falsa ou ao menos parcialmente enganosa. Que as taxas nominais são altas é um fato. Porém, para se chegar à afirmação de que as taxas reais também o são temos de introduzir na análise elementos altamente incertos e de difícil mensuração - em especial num país com passado hiperinflacionário como o Brasil - que são as expectativas inflacionárias. Para exemplificar a questão, convido o leitor a fazer um breve exercício mental. Em primeiro lugar, qual seria a sua expectativa para a taxa de inflação anual, digamos, daqui a cinco anos? Algo coerente com a atual meta do BC de 4,5% poderia ser uma resposta interessante. O leitor mais desconfiado, porém, pode protestar: e quanto ao risco de um retorno ao nosso passado de descontrole inflacionário? Fatores como a elevada dívida do setor público brasileiro denominada em moeda nacional, portanto passível de ser reduzida caso a inflação suba, talvez tornem o país mais vulnerável em comparação a outros que também tiveram experiência hiperinflacionária recente.
Suponhamos então que, em vista disso, o leitor atribua uma probabilidade baixa, digamos de dez em cem vezes, de que no futuro a inflação volte a fugir do controle, atingindo níveis semelhantes aos de alguns de nossos vizinhos sul-americanos. Nesse caso sua "real" expectativa inflacionária seria de 90% multiplicado por 4,5%, somado à multiplicação de 10% por 30%. Isso resultaria em expectativa de 7% - 57% maior do que a meta inflacionária atual. É possível imaginar ainda que essa probabilidade do cenário ruim varie no tempo. Em épocas de maior incerteza, como por exemplo em 1999 ou 2002, parece razoável atribuir uma probabilidade maior para o cenário ruim (digamos 30%), e aí sua real expectativa inflacionária seria de 12%. Esse simples exercício ilustra a força de um fenômeno popularizado por Milton Friedman que, ao analisar na década de 70 o desconto perene que o mercado de câmbio embutia sobre o peso mexicano, cogitou que isso se devia à atribuição de uma pequena probabilidade de que uma grande variação de preço pudesse ocorrer. Desde então esse tipo de fenômeno ficou conhecido como "peso problem".
-------------------------------------------------------------------------------- Redução da dívida pública e independência do BC são fatores que reduzem a probabilidade de cenário inflacionário --------------------------------------------------------------------------------
A questão se as expectativas inflacionárias brasileiras sofrem ou não de algo parecido com o "peso problem" passa necessariamente pela resposta do porquê então as medidas usuais de expectativas não captariam tal fenômeno. Quanto à expectativa coletada pelo Banco Central junto às instituições financeiras no relatório Focus, é possível compreender como isso poderia acontecer. As instituições são periodicamente ranqueadas pelo Banco Central com base no respectivo grau de acerto das suas previsões. Como se trata de um evento de probabilidade muito baixa, mas que está multiplicado por uma inflação muito alta, a instituição que por acaso revelasse sua "real" expectativa estaria fadada a permanecer entre as últimas posições do ranking 90% do tempo, de acordo com o primeiro exemplo acima. É compreensível, então, que mesmo no caso das expectativas efetivamente sofrerem do "peso problem", isso dificilmente apareceria no Focus, dada a estrutura de incentivos envolvida na revelação da opinião do entrevistado.
Quanto à expectativa de inflação embutida nos preços de mercado dos títulos indexados à inflação (o chamado "break-even"), é possível argumentar que esta já considera, sim, alguma probabilidade de um cenário alternativo ruim de inflação se materializar, já que ela geralmente adiciona um prêmio de risco à expectativa do Focus. Porém, a magnitude dessa diferença não é grande, sendo mais compatível, no exemplo acima, com uma ordem de grandeza para a probabilidade do cenário ruim se materializar menor do que 10%. Para que tivéssemos um "peso problem" de magnitude maior do que essa, teríamos necessariamente que recorrer a alguma falha de mercado, ou fricção específica do mercado de NTN-Bs, que estaria provocando uma subestimação da expectativa inflacionária real pelo "break-even". Por exemplo, a falta de liquidez desse mercado em determinados momentos pode induzir a um prêmio por liquidez que trabalharia no sentido oposto ao prêmio de risco inflacionário, contribuindo para a subestimação da expectativa de inflação. Se considerarmos que a probabilidade do cenário ruim se materializar é variável no tempo, esse efeito poderia ser magnificado em épocas de risco inflacionário muito alto.
Deixando um pouco de lado essas dificuldades nada triviais de reconciliação com o mercado de NTN-Bs, porém, podemos pensar em quais seriam as consequências práticas caso a hipótese do "peso problem" tivesse algum grau de veracidade no Brasil. As taxas de juros nominais seriam altas devido ao risco de surpresas inflacionárias se materializarem, as taxas reais efetivamente percebidas pelos agentes seriam mais condizentes com a experiência internacional e a economia estaria reagindo de forma absolutamente normal a esses estímulos, sem nenhum tipo de insensibilidade inexplicável aos juros reais. Além disso, o incentivo para se reduzir a dívida pública e avançar na direção da independência formal do Banco Central seria ainda maior, já que esses fatores poderiam reduzir a probabilidade percebida do cenário ruim se materializar, diminuindo as "reais" expectativas inflacionárias e abrindo espaço para taxas de juros nominais menores.
Andrei Spacov é economista da Gávea Investimentos, doutor pela Universidade de Berkeley, Califórnia.